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“Dia da Consciência Negra: A Arte de Não Ser Branco No Brasil”, por Dell Santos

Dell Santos de brancoO Brasil é um caldeirão étnico. Terra de negros ouvindo roque, índios sambando, japoneses batendo tambor e loiros comendo acarajé. Essa é nossa realidade: somos a panaceia cultural e étnica, o lugar em que judeus beijam palestinos e todos comem tanto a feijoada brasileira quanto a pizza italiana. À primeira vista o Brasil parece, portanto, a perfeição quando se trata de aceitação étnica.

Quem tiver uma visão mais acurada da nossa realidade, no entanto, vai perceber que não é bem assim. Muito se progrediu, nos últimos tempos, no que concerne à inserção das “minorias” étnicas nos meios de comunicação, por exemplo. E faço questão de por o termo entre aspas, pois a despeito de nossa maioria ser não branca, os não brancos no Brasil serão sempre relegados a uma situação de minoria, serão tratados como uma minoria sem direitos.

A discussão a respeito das linhas do Direito Constitucional já abordava essa questão. Durante os preâmbulos da Segunda Grande Guerra, por exemplo, muitos constitucionalistas pregavam que a Constituição tinha que falar em nome das maiorias, e não em nome da totalidade da população: o que fosse bom para a maioria prevaleceria, pouco importando que pessoas com obesidade mórbida não pudessem nem entrar num ônibus ou os extremamente altos não conseguissem um assento cômodo.

Isso mudou, e o Direito passou a estabelecer regras em que todas as nuances de ser humano tivessem seus direitos garantidos, tivessem um “lugar ao sol”. Hoje temos a clara noção de que a sociedade se compõe de indivíduos diferentes entre si, em praticamente todos os aspectos, e de que isso é positivo, salutar, e por isso a humanidade é tão rica. Essa percepção da riqueza da variedade humana é exatamente aquilo que Hitler fazia questão de que faltasse à ideologia nazista. Ele, como muitos outros, quis homogeneizar a humanidade, e morreu sufocado em seu próprio veneno, seu próprio azedume.

Após décadas de dicotomia entre ideologias no mundo, a humanidade entrou no século XXI com alguns preceitos praticamente inquestionáveis. Um deles é o de que os seres humanos devem ter acesso às benesses sociais quer pertençam ao grupo que pertencerem. Nenhum grupo, nos dias de hoje, pode se arrogar o direito de acesso a algumas benesses em detrimento do direito de outros grupos. Pelo menos em tese.

No entanto, no que pese a disseminação de uma ideologia de igualdade de direitos e igualdade de participação, ainda constatamos, nos dias correntes, a exclusão sutil e velada, o preconceito recoberto por uma aura de pudor, um preconceito não declarado, porém existente. E forte.

O Dia da Consciência Negra nos faz pensar em instrumentos que sejam eficazes no combate a todo e qualquer tipo de preconceito. O negro não aguenta mais ser visto como o baluarte do samba, como elemento de uma contracultura em que os únicos valores são aqueles afeitos à arte popular, à musicalidade e a outras coisas “exóticas”. O orgulho negro passa necessariamente pela afirmação dessa etnia como inteiramente aderida às práticas imprescindíveis nos dias de hoje, em todas as esferas da vida: não podemos conceber que o branco detenha o poder econômico, exerça o controle sobre os processos tecnológicos, encabece as principais pesquisas científicas, ao passo que aos não brancos sobre apenas um papel “folclórico”, ou de alegoria carnavalesca. Sem desvalorizar todas essas tradições culturais, é notório, nos dias de hoje, que grande parte do processo econômico, científico, tecnológico é encabeçado por “não brancos”. A China é uma potência que cresce a passos largos, e a Índia há muito se destaca em seu fornecimento de cérebros científicos ao Ocidente. Não é preciso, portanto, retroceder ao tempo dos impérios Azteca, Maia, Inca para encontrarmos levas e mais levas de “não brancos” exercendo todo um poderio político, econômico, científico.

A consciência negra, nos dias de hoje, precisa necessariamente levar em conta esse entendimento: de que nos dias que correm todos têm contribuído para o progresso econômico, científico e cultural. A despeito do atraso de grande parte do continente africano, os negros têm ingressado em muitos dos mais altos postos acadêmicos, têm liderado tribunais superiores pelo mundo afora, têm participado de decisões políticas estratégicas, e têm mostrado que sua principal diferença em relação aos brancos reside unicamente na pigmentação da pele.

Muito temos avançado nos últimos tempos. Mas só seremos de fato respeitados quando houver uma efetiva igualdade de oportunidades: quando os não brancos puderem de fato ter as mesmas chances dos brancos. Os não brancos, então, não precisarão estar necessariamente entre os brancos para ter maior notoriedade, maior visibilidade social. Quando um não branco buscar estar entre brancos, buscando lograr o que os brancos lograram, isso não parecerá oportunismo. Todos se entrosarão livremente, e as cores do arco-íris serão definitivamente dissolvidas. Viveremos num mundo mestiço. Esse é o futuro da Humanidade. Mas enquanto o tão sonhado futuro não chega, precisamos fortalecer os movimentos de igualdade étnica, que espraiarão pelo mundo afora a igualdade de oportunidades entre todos os seres humanos, a despeito da diferença de cor, credo, idade, etnia e todos os tipos de diferença em que se calca a discriminação.

*Dell Santos é coordenadora de Eventos do Secretariado Municipal de Mulheres PSDB MULHER e 2ª vice –presidente do TUCANAFRO municipal PSDB SP e vice-presidente da ONG Luca- Amor Solidário.