Mais uma vez, o parâmetro para rever os programas de assistência deveria ser a Lei Orgânica de Assistência Social. Segundo a LOAS, os programas e serviços de assistência devem ser organizados de acordo com o tipo de proteção a ser oferecido: proteção básica, para prevenir situações de vulnerabilidade, e proteção especial, voltada para grupos de maior risco.
Em outras palavras, a proteção básica se encarrega de garantir as condições necessárias para que os diferentes membros de uma família pobre possam aproveitar as oportunidades de promoção, geradas pelas políticas educação, saúde, esporte, cultura e geração de renda, dentre outras.
Por isto, as novas diretrizes para a área de proteção básica foram concebidas, tomando como unidade básica a família, e utilizando a metodologia dos Ciclos de Vida para a organização programática. Esta última diretriz visava atender às necessidades específicas dos membros de uma família pobre, em cada uma das diferentes faixas etárias: primeira infância, criança e adolescente e juventude.
Os adultos não eram considerados como grupo mais vulnerável, a não ser que estivessem em situação de risco social, passando a ser alvo das ações de proteção especial. Na área de proteção especial, com foco nos grupos de alto risco, já faziam parte do portfólio da assistência programas para idosos pobres e pessoas com deficiência.
Eram serviços, como abrigos, centros de reabilitação e centros de convivência; além de transferência não condicionada de renda, por meio do Benefício de Prestação Continuada (BPC). É importante destacar que, tanto para idosos quanto para pessoas com deficiência (PCD), o objetivo era a melhoria da qualidade de vida e a busca da autonomia. Especialmente no grupo de PCD, havia grande ênfase no processo de inclusão nas políticas de educação, saúde, cultura, lazer, esporte e geração de renda.
Além do atendimento a estes grupos mais tradicionais, foram criados novos programas para vítimas de abuso e exploração sexual e para mulheres vítimas de violência (Projeto Sentinela). Este projeto oferecia abrigo, apoio social, psicológico e jurídico à vítima e às vezes também ao agressor e tinha um caráter intersetorial.
Por outro lado, pouco se avançou em propostas para a população de rua que havia sido o foco de minha atuação na prefeitura do Rio de Janeiro. A centralidade na família e na mulher É preciso destacar que a unidade básica do processo de produção e reprodução da pobreza é a família. Quando falamos em família estamos, sem dúvida nos referindo a suas diversas formas de constituição.
Ela funciona como célula geradoras de renda e de consumo, além de exercer funções sócio afetivas e de transmissão cultural para seus membros. Se as famílias constituem a célula mater da pobreza, são também o lócus para sua superação. Somente as famílias, podem ser as protagonistas de seu próprio processo de promoção.
Para isto, devem dispor de condições financeiras mínimas, propiciadas por programas de transferência de renda e ter garantidos seus direitos à educação, à saúde e à formação profissional de qualidade, dentre outros. Além disso, necessitam receber informações sobre temas que interferem negativamente na dinâmica familiar, e ter garantido o atendimento em serviços assistenciais, referentes a suas necessidades especícas (documentação, usuário de droga, violência doméstica).
Baseado nessas premissas, foi concebido e implantado o Programa Brasil em Família. Este programa tinha, como público, as mães de famílias em situação de pobreza e vulnerabilidade. O programa se iniciava com um diagnóstico da situação familiar (mapa das demandas). Além de levantar as demandas, era necessário identificar e cadastrar a oferta de serviços existentes, de iniciativa de diferentes níveis de governo (federal, estadual e municipal), de ONGs ou do empresariado, que garantisse o atendimento.
Deveriam ser cadastrados serviços nas áreas de assistência social, educação, saúde, trabalho e renda, esporte, prossionalização, cultura e habitação, configurando o caráter intersetorial da iniciativa. Finalmente, fazer o encaminhamento para os serviços que atendessem às necessidades identificadas, estabelecendo a ponte entre demanda e oferta.
Este tipo de proposta era importante, inclusive, para identificar lacunas na oferta de serviços assistenciais. Durante este processo, era desenvolvida uma ação educativa, em reuniões mensais com grupos de mães, sobre temas relevantes para a dinâmica familiar, como: valor da escola, desenvolvimento infantil, gravidez na adolescência, violência doméstica, educação financeira, saúde reprodutiva, entre outros. Estes encontros serviam também para o acompanhamento do processo de promoção familiar.
Além disso, era fundamental que se garantisse o atendimento prioritário nos serviços cadastrados. Para identificar a prioridade era utilizado um cartão PASSAPORTE CIDADÃO, substituído, mais tarde pelo cartão bancário da Rede de Proteção Social, denominado Cartão Cidadão.
O Brasil em Família era desenvolvido pelos Núcleos de Apoio à Família (NAFs) que funcionavam em Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), centros comunitários, centros de múltiplo uso, escolas, postos de saúde, igrejas, ou outros tipos de unidade prestadoras de serviço, já existentes, e que dispusessem de instalações adequadas.
Mais informações sobre o programa Brasil em Família podem ser obtidas na apresentação a seguir:
Para apoiar o papel central exercido pela mulher no processo de promoção das famílias pobres, especialmente as monoparentais, todos os programas da política de assistência social, principalmente os de transferência condicionada de renda, tinham a mulher como beneficiário prioritário.
Dizíamos que os programas eram “em nome da mãe”. Foi interessante notar que a garantia da renda foi um importante instrumento para que a mulher dissesse não à violência doméstica. Uma reportagem na Revista Veja registou o aumento substantivo das separações de casais no Nordeste, em função dos programas de transferência de renda.
Assim, mulheres que vinham se submetendo, durante anos, aos maus tratos de seus maridos, sentiram-se financeiramente seguras para descartarem seus agressores. Organizando os programas por Ciclo de Vida Como já foi dito, utilizamos a metodologia dos ciclos de vida no processo de reorganização programática.
Assim, foram redefinidas políticas e programas para a primeira infância, crianças e adolescentes e jovens. A grande vantagem de se pensar políticas e programas, tomando por base as diferentes etapas do ciclo de vida, é não perder de vista o beneciário direto destas ações.
Quando concebemos, por exemplo, uma política para crianças pobres entre 0 e 6 anos, estes meninos e meninas, bem como suas necessidades, passam a ser nosso referencial concreto, resguardando-nos do perigo de utilizar a ideia abstrata de “programas para a pobreza”. Sempre que trabalhava na concepção de programas para esta fase, por exemplo, propunha que os profissionais tentassem visualizar aquela criança para a qual estavam dirigidas as ações: pobre; subnutrida; criada por uma mãe com baixa escolaridade, subempregada ou desempregada; sujeita a um ambiente poluído e muitas vezes violento; em uma habitação precária; sem acesso à educação infantil ou a serviços de saúde de qualidade. Somente a partir desta imagem concreta era possível pensar diretrizes políticas e programas, voltados a atender às necessidades desta criança. Política e programas para a primeira infância: onde tudo começa
Estudos nos campos da educação, psicologia, neurociência, e até da economia são unânimes em ressaltar a importância crucial de políticas de primeira infância, tanto em relação aos indivíduos, quanto ao processo de desenvolvimento econômico e social do país. Historicamente o programa assistencial para a primeira infância resumia-se a dar suporte à oferta de educação infantil, em creches e pré-escolas comunitárias, ou pertencentes às redes municipais. Constava do programa o apoio financeiro para construção das unidades e os recursos para o seu funcionamento.
Neste sentido, como as propostas de construção costumavam embutir sérios problemas de superfaturamento e corrupção, foram concebidos projetos arquitetônicos padrão, com custo pré-estabelecido. A prefeitura deveria escolher o projeto que melhor se adaptasse à sua realidade e, se quisesse acrescentar melhorias, tinha de arcar com os custos extras.
Hoje penso que projetos padrão não conseguem “conversar” com a enorme diversidade geográfica e cultural do nosso país, mas na época parecia uma estratégia interessante para enfrentar o superfaturamento e a corrupção em obras públicas. Num sentido exatamente contrário, temos atualmente uma legislação que permite que uma mesma empresa seja responsável tanto pelo projeto executivo, quanto pela realização da obra. Inacreditável!!!
Por outro lado, o fato de existir uma rede de educação infantil, gerida pela política de assistência foi sempre motivo de severas críticas por parte dos educadores. A partir de 2000, houve uma normatização da questão, transferindo este atendimento para a área de educação.
A partir de então, todas as unidades deveriam se adaptar às normas de funcionamento redefinidas pela área de educação, incluindo a exigência de formação dos docentes em nível superior. O processo de adaptação foi demorado e de difícil operacionalização, mas supõe-se que tenha representado um ganho de qualidade neste atendimento.
O ponto negativo foi que, no âmbito da política de assistência, era possível definir, como prioridade absoluta, o atendimento a crianças em situação de risco (extrema pobreza, desnutrição, vítimas de violência, famílias de presidiários ou com membros portadores de deficiência ou doenças graves).
Já como unidades do sistema educacional, de caráter universal, não existia esta possibilidade. Não se pensou, à época, na possibilidade de uma ação intersetorial, incluindo educação, saúde e assistência, segundo a qual, permanecendo as unidades sob a responsabilidade técnica da educação, houvesse a possibilidade de se denir uma prioridade absoluta para as crianças identificadas como de extremo risco, pela saúde ou pela assistência.
Atualmente esta proposta, implantada por exemplo pela prefeitura do Rio de Janeiro, já garante a prioridade de atendimento a crianças encaminhadas pelos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) ou Conselhos Tutelares. 19/12/2019 Wanda Engel wandaengel.com/timeline-post/t1-episodio-3-revendo-os-programas-de-assistencia/ 7/8
Na verdade, políticas intersetoriais são quase uma exigência na primeira infância. Como o objetivo básico nesta fase é a garantia de condições para o desenvolvimento integral das crianças, seria indispensável um trabalho intersetorial entre saúde, educação, assistência e poder judiciário, articulado em um programa que garantisse às mães e seus filhos, desde o pré-natal, até o ingresso na pré-escola, condições de desenvolvimento familiar e infantil plenos.
Naquele momento, a proposta (pelo menos no papel) era a de envolver as principais áreas, numa atuação intersetorial que incluía: a universalização do pré-natal e do Registro Civil, o atendimento de educação infantil, formal ou alternativo, e o trabalho com as famílias. A universalização do Registro Civil era o foco do Programa “Brasil com Nome e Sobrenome”, que envolvia as mães e seus filhos, no fornecimento da certidão de nascimento, inclusive a partir das próprias maternidades, além de mutirões de documentação nos municípios mais pobres. Este enorme esforço de reduzir o percentual de indocumentados foi essencial, inclusive, para os programas de transferência de renda.
No início da implementação da Rede de proteção Social, estavam ficando excluídas, justamente as famílias de extrema pobreza, por falta de documentação das mães. Já a proposta do atendimento alternativo de educação infantil propunha o apoio a mães crecheiras, por meio de creditação, melhorias habitacionais e apoio técnico/capacitação, oferecido em creches-polo. Esta proposta enfrentou muitas resistências e acabou não se concretizando. Finalmente, o trabalho com as famílias era função dos Núcleos de Apoio às Famílias.
Parte destas propostas foi mais tarde consolidada, em nível nacional, pelo o programa Criança Feliz, e em nível local, pelo município de Boa Vista. Um dos grandes problemas, especialmente das famílias pobres, é a inexistência da gura paterna, concentrando nas mães toda a responsabilidade pela criação da prole. Uma experiência muito interessante, no enfrentamento desta questão, ocorre na pequena Costa Rica.
Por uma determinação legal, as mães não podem sair da maternidade sem declarar o nome do pai. Os profissionais de assistência se encarregam de contatar o indicado. Se a paternidade é admitida, ela é oficializada na certidão de nascimento, passando o pai a assumir suas responsabilidades legais. Em caso contrário, é feito o exame de DNA. Se comprovada a paternidade, o pai, além de registrar a criança, tem de pagar o teste. Caso o indicado não seja o pai, a mãe é quem tem de arcar com o valor o teste. Com isto, baixaram substancialmente os casos de crianças sem pai identificado e os índices de gravidez na adolescência. Bingo! No Episódio 4 você vai conhecer o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), uma iniciativa reconhecida pela OIT como de grande impacto na diminuição das piores formas de trabalho infantil.
Dada a importância da juventude no processo de reprodução da pobreza, este tema também será abordado, com destaque para a proposta do Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano. A ideia geradora desta iniciativa é a visão do jovem, não como um problema, mas como parte da solução.
*Wanda Engel é diretora do Instituto Synergos no Brasil e foi ministra da Assistência Social.
**O artigo foi publicado no blog de Wanda Engel.