Opinião

“Distopia e realidade”, por Solange Jurema

O romance distópico, do grego “lugar ruim”, O Conto da Aia, de Margaret Atwood, escrito em 1985, trata de um país imaginário Gilead. Neste Estado teocrático e totalitário, há um cenário de uma república em que não existem mais jornais, revistas, livros, cinema e as universidades foram extintas. Também desapareceram os advogados porque não existe mais o direito à defesa.  Neste contexto são considerados criminosos aqueles que ousam discordar do regime, sendo esses fuzilados e pendurados mortos nos muros para servir de exemplo. Neste Estado imaginário, as mulheres são as principais vítimas, anuladas por uma opressão, homogeneizadas com trajes iguais, sem nomes e categorizadas em castas: esposas, escravas sexuais e servas. Esta estória assustadora, que foi transformada no seriado The Handmaid’s Tale, nos leva a refletir sobre liberdade, direitos civis, poder e a fragilidade do mundo em que vivemos em pleno século XXI.

Quaisquer semelhanças com o que assistimos atualmente não são coincidências. Não me refiro apenas ao Afeganistão – país em que as mulheres parecem viver em outro mundo distante de nós, ocidentais “cristãos”, considerado distópico e em que mais uma vez, em nome de Deus, se cometem abusos e atrocidades, principalmente contra as meninas, as jovens e as adultas. São crianças que têm o direito ao saber vetado, mulheres excluídas das oportunidades de trabalho, educação e de escolha como um todo. Imaginar que este cenário trágico ocorre na região em que um dia foi a rota da seda e que reúne sítios históricos valiosos. Uma dor coletiva incalculável. Atrocidades sustentadas em argumentos religiosos. Infelizmente muitas religiões cometeram seus excessos, a própria Igreja Católica, na época da inquisição, queimava as mulheres que ousavam ter conhecimento em praça pública como bruxas.

A reflexão vai muito mais além, observam-se os tipos de violência e os distintos graus de opressão sofridos pelas mulheres em todos os Continentes. Precisamos discutir sobre a condição humana e as relações de poder entre homens e mulheres no contexto da violência, não pelo simples fato de afirmar que a violência contra as mulheres é uma violação dos Direitos Humanos, mas, por provocar reflexões sobre o que há de específico e universal na prática da violência não contra a mulher, mas contra mulheres. Na gênese da discriminação estão as diversas formas de violência, cujas bases raciais étnicas, de identidade sexual, de estatuto social, classe e dimensões identitárias predominam.

Não podemos nem devemos esquecer que as práticas culturais também definem leis e decidem vidas humanas. Em muitos países, a sociedade soube construir códigos e hábitos mais humanos e igualitários relativos às relações de gênero. Mas a nossa memória coletiva continua ensinando tipos de comportamento ligados às mentalidades arcaicas, assim somos instrumentos dessa transmissão. Precisamos mudar de paradigmas e desconstruí-los.

O mês de agosto Lilás é a oportunidade de escancararmos os índices brasileiros de mulheres assassinadas por seus companheiros pelo simples fato de não se submeterem. Em 2020, o Brasil registrou 1.350 casos de feminicídio — um a cada seis horas e meia, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Precisamos alertar também para o pouco acesso das mulheres nos espaços de poder, dos salários diferenciados em que se leva em consideração gênero e raça mais do que competência e conhecimento e tantas outras formas de discriminação explícita ou sutil. No contexto político, por exemplo, apesar dos avanços e da maioria do eleitorado ser composto por mulheres, nas últimas eleições municipais, apenas 33,55% do total de candidaturas eram femininas.

Essa discussão e as formas de desconstrução dos paradigmas não podem ser restritas apenas a nós, mulheres, é fundamental que os homens participem, afinal eles também são prisioneiros do sistema mesmo quando discordam dele. Essa desconstrução tem que ir além das discussões acadêmicas e começar pelas escolas, sem esse disparate de associar a discussão de gênero como influência negativa para “meninos” e “meninas”, azuis e rosas, machos e fêmeas, pois nos países em que há os índices de melhor desenvolvimento humano existe maior equilíbrio nas relações de gênero, como Noruega, Austrália e Suíça.

*Presidente de honra do PSDB-Mulher Nacional, foi a primeira ministra da Mulher durante a gestão do então presidente Fernando Henrique Cardoso (2002), recebeu Diploma Mulher-Cidadã Carlota Pereira de Queirós (2019), é Procuradora de Estado aposentada de Alagoas.