Notícias

O machismo está “on” na CPI, escreve Beatriz Della Costa

A senadora Leila Barros (PSB-DF) em sessão da CPI da Pandemia: ambiente 'apenas reproduz o que muitas de nós vivemos diariamente'. Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Representação feminina é reduzida
Senador corta fala de colega mulher
Machismo tenta estagnar a inovação
Países como Chile indicam evolução

Por Beatriz Della Costa

Só não dá para chamar a CPI da Covid de “CPI do Machismo” porque, claro, o machismo não vem sendo investigado ali —está simplesmente sendo exposto em sua forma bruta e brutal. O Big Brother from hell que temos acompanhado na Comissão Parlamentar de Inquérito oferece uma triste espiadinha na batalha diária que é a realidade das mulheres na política brasileira. A violência política de gênero passou a ser transmitida em rede nacional. O machismo está on na CPI —e o mais chocante é que parece que isso não choca ninguém.

A misoginia já estava mais do que evidente logo na formação da comissão do Senado que apura a responsabilidade do governo federal pelas centenas de milhares de mortes de brasileiras e brasileiros pela covid-19. Embora as mulheres tenham sido as mais impactadas pela pandemia, com os filhos fora das escolas e o acúmulo das tarefas domésticas, nenhuma senadora foi indicada entre os 18 membros da CPI. Como se não bastasse, logo de início, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), que nem parte da comissão faz, disse que as mulheres não “fazem questão” de participar e “se conformam em acompanhar o trabalho a distância”.

As mulheres reagiram, sendo então estabelecido que uma representante da bancada feminina poderia fazer perguntas aos convocados durante as sessões —porém sem o direito de apresentar requerimentos ou votar. Mesmo esse papel de coadjuvante incomodou muitos homens. O senador Roberto Rocha (PSDB-MA) foi um desses, alegando que a CPI não trata de temas “específicos de mulheres”.

Teve mais, claro. Ao falar na CPI, a senadora Leila Barros (PSB-DF) foi continuamente interrompida pelo senador Marcos Rogério (DEM-PR). Quando tentou reaver a palavra, ela ouviu, numa voz repleta de sarcasmo e, principalmente, machismo: “Calma, não precisa ficar nervosa”. E continuou tendo sua fala atravessada.

Após o ocorrido, Leila afirmou que o ambiente político “apenas reproduz o que muitas de nós vivemos diariamente”. E é exatamente isso. A violência política de gênero —que nem sempre se manifesta de forma física, também pode ser psicológica— nada mais é do que a transposição para o ambiente político da violência de gênero com a qual convivemos diariamente.

Vamos lá: no dia a dia profissional, dentro de empresas e em tantos outros lugares, o desequilíbrio entre mulheres e homens em cargos de liderança segue gigante. Por que, então, na política, quando um monte de homens se reúne para tomar uma decisão, algo diferente aconteceria? Eles nem vão cogitar chamar uma mulher. Outra: essa coisa de dizer que a CPI não trata de “temas de interesse das mulheres” é só um jeito diferente de expressar o que a gente ouve muito por aí —que tal e tal temas (entre eles, aliás, a política) não são “coisa de mulher”, como se mulher só pudesse falar de um punhado de assuntos pré-definidos pelos homens. Já o caso das interrupções da fala da senadora Leila junta 2 situações corriqueiras aqui fora: manterrupting, que é quando um homem não deixa uma mulher concluir seu pensamento por ela supostamente ter menos autoridade do que ele para versar sobre algum assunto, e o gaslighting, quando uma mulher é apontada como “histérica” ou “louca” por machos que querem calar sua voz.

Sempre é bom frisar que esse é um tipo de ataque motivado pelas expectativas sobre o papel que a vítima deveria ocupar na sociedade. Seus algozes acreditam que o único lugar onde a mulher pode estar é o da submissão. O que acontece é que na política o dano potencial dessa violência é ainda maior que em outras esferas. Afinal, calar os direitos políticos das mulheres é calar um futuro que as mulheres com consciência de gênero vêm batalhando para construir. Calar uma mulher na política vai, dessa forma, calar muitas e muitas mulheres do lado de fora.

Ter mais mulheres no poder é uma imensa inovação política e algo essencial para a democracia e para o mundo neste século 21. O que o machismo e a violência política de gênero fazem é tentar impedir essa inovação —tentar manter a política como está, tentar perpetuar o patriarcado no poder, tentar evitar que as mulheres possam pôr em prática sua imaginação política e construir um futuro muito mais justo para todos. Sim, eu disse para todos, homens e mulheres.

Enquanto isso, não muito longe daqui, um país deu um passo que, mesmo devagarinho, promete deixar essa rotina de violência para trás. O Chile acabou de escolher quem vai integrar sua nova Assembleia Constituinte, ou seja, as pessoas que vão desenhar a primeira constituição do país desde os tempos de ditadura. O que tem de novo aí é que essa será a primeira Carta Magna paritária da história da humanidade: as eleições foram guiadas pelo princípio da equidade de gênero, de forma que o documento chileno será elaborado por um grupo formado por 50% de mulheres.

O Chile prova que, quando o machismo tira a perna da frente, as mulheres estão mais do que prontas para participar das decisões políticas. Deixa claro também que os temas “específicos de mulheres” são todos os temas que influenciam as nossas vidas e o nosso futuro como sociedade. Com calma —algo que as mulheres têm de sobra, pois nossa capacidade de escuta e de empatia pragmática é imensa— vamos chegar lá. E ninguém nunca vai ter dúvidas de que lugar de mulher é onde ela quiser. Aqui, ali ou na CPI.