“Hoje infelizmente minha vida corre risco. Ameaça de tudo que é lado, de tudo que é jeito. Eles olham para mim e acham que ‘é presa fácil, não vai ser muito corajosa’. Para trabalhar, hoje tenho que trabalhar com escolta. Minha vida virou um inferno desde que me declarei do lado certo, do lado da ciência, da vida das pessoas. É uma construção, em parte, política. Infelizmente a política entrou na pandemia. Você vê que é um movimento muito bem construído. É feito por extremistas”.
A prefeita de Palmas (TO), Cinthia Ribeiro (PSDB), falou à coluna sob o impacto da morte por Covid-19, na quinta-feira (18/3), da secretária municipal de saúde, Valéria Paranaguá, 58, após duas semanas internada numa UTI.
Cinthia disse ter virado um alvo de ameaças e manifestações na porta de sua casa e na prefeitura depois que assinou um decreto, no dia 3 de março, com validade a partir do dia 6, pelo qual restringiu por dez dias o comércio não essencial e outras atividades a fim de conter a pandemia do novo coronavírus.
No dia 4, segundo relatório do governo estadual, Palmas atingiu 100% de sua capacidade de leitos de UTI na rede pública. O número de mortos no Estado era de 269 no dia 4 e neste sábado já chegou a 334. São necessárias semanas, segundo a prefeitura, para que os efeitos das restrições cheguem às estatísticas.
O decreto municipal foi renovado no último dia 16. Com o ato, a Prefeitura suspendeu todas as atividades não essenciais, incluindo restaurantes (com exceção de entregas a domicílio), aglomerações, cultos, missas e “eventos de toda e qualquer natureza”. No domingo, as regras ficam ainda mais rígidas, com proibição de delivery dos restaurantes.
As pressões contra a prefeita começaram ainda no dia 3 e atingiram o auge no dia 11. Perfis criados em redes sociais convocaram carreatas e um protesto para a frente da casa de Cinthia, um condomínio em Palmas no qual vivem cerca de 50 famílias, segundo a prefeita.
Os manifestantes se reuniram na entrada do edifício e passaram horas gritando, xingando a prefeita e disparando fogos de artifício. “A ideia deles era criar um pânico. Jogaram pau, pedra, na porta do meu prédio. Quase 50 famílias, aí sim, ficaram impedidas de ir e vir, ninguém podia sair do prédio. Jogaram foguetes no nosso prédio. Palavras de horror. Eles esquecem que temos filhos – eu tenho um filho cardiopata. Ficou a família toda trancada aqui dentro, observando o horror lá fora. Estavam todos descumprindo o decreto, que prevê a não aglomeração. Eles não acreditam que o vírus contamine, que seja letal”, disse Cinthia.
A prefeita também passou a receber, segundo ela, “inúmeras ameaças de morte” no telefone celular e nas redes sociais, quase sempre por meio de perfis falsos. Ela pediu apoio da Guarda Metropolitana para conseguir se deslocar pela cidade. Além disso, contratou segurança particular. Apurou-se que um dos manifestantes “é investigado ou processado por sete homicídios”, segundo a prefeita.
Criaram uma página no Instagram para pedir a saída da prefeita do cargo. Carreatas e protestos são organizados com apoio de políticos, de acordo com a prefeita. “É tudo às claras, eles não escondem nada. ‘O deputado Fulano está mandando litros de gasolina. Sicrano está mandando bandeiras.’ Perdemos um tempo imenso tendo que investigar esses perfis falsos nas redes, separar, denunciar, pedir providência. Isso no meio de uma pandemia”, diz a prefeita.
Em ação contra prefeitura, promotor ataca decreto e cita ivermectina
Em outra frente, Cinthia é alvo das iniciativas de um promotor de Justiça, Adriano César Pereira das Neves, que ajuizou uma ação civil pública com o objetivo de suspender o decreto do dia 3 de março. Na terça-feira (16/3), a prefeita manteve uma audiência com o procurador-geral de Justiça, Luciano Cesar Casaroti, para “tentar entender a posição do Ministério Público e passar uma posição do que sofremos na ponta”, segundo Cinthia.
“Cada promotor tem sua liberdade e independência para promover as ações, mas é claro que é um desfavor imenso. Atrapalha sobremaneira. Principalmente quando se usa fake news e protocolos que – já foi comprovado cientificamente – não têm eficácia nenhuma. Temos que parar os trabalhos para responder esse tipo de coisa“, disse Cinthia.
Na ação civil pública, o promotor disse que o decreto causou “efeitos nefastos” e “anulou o núcleo essencial dos direitos conquistados pelo povo”. Ele citou supostos estudos sobre a ivermectina, medicamento indicado para tratar infestações de parasitas como piolho e sarna. “É consabido que o tratamento preventivo e/ou precoce com fármacos de baixo custo que há décadas são utilizados no combate a outros tipos de viroses e doenças autoimunes se mostraram eficientes no combate ao corona vírus, fato esse irrefutável”, escreveu o promotor.
Diversas organizações médicas e órgãos públicos no Brasil e no exterior já disseram que a ivermectina ainda não tem eficácia comprovada contra a Covid-19. A própria fabricante do medicamento, a Merck, disse que não há evidência de eficácia no uso da ivermectina em pacientes com Covid-19. A Agência Lupa de checagem de informação apontou que “é falso que pesquisas comprovam a eficácia da ivermectina para tratar ou prevenir a Covid-19”.
Em sua ação civil, o promotor Adriano Neves afirmou ainda que “lideranças que não gozam de credibilidade junto à população vem se utilizando de forma recorrente de medidas coercitivas impostas sob o manto do combate à pandemia em total afronta aos direitos fundamentais de seus administrado”. O promotor pediu que a Prefeitura de Palmas seja condenada “a fazer um Plano de Compensação dirigido à população atingida pelos efeitos nefastos do decreto”.
No último dia 12, o juiz da 1ª Vara da Fazenda e Registros Públicos de Palmas, William Trigilio Silva, indeferiu o pedido de liminar do promotor, mas mandou intimar a Prefeitura. Na decisão, o juiz escreveu que, “como já pontuado em outras decisões, tenho de que o lockdown não deve ser usado como método primário de controle da disseminação do vírus da covid”. Ele citou a frase de um “emissário da OMS [Organização Mundial da Saúde], dr. David Navarro [sic, Nabarro]”, que criticou o lockdown.
A mesma frase tem sido disseminada nas redes sociais fora do contexto – Nabarro falou dos impactos negativos do lockdown, mas também justificou a medida em momentos de crise, a fim de reorganizar sistemas de saúde e proteger profissionais da linha de frente.
O juiz também escreveu: “Se de um lado a preservação da saúde e da vida é importante, não se pode desprezar o direito de o cidadão levar o alimento até a mesa de sua família de forma digna, cujo direito está atrelado ao princípio da dignidade da pessoa humana. Contudo, não é possível, no atual contexto, determinar, sem apoio em dados técnicos, com fundamento apenas em opinião, a liberação total da circulação das pessoas, como se não houvesse mais pandemia. As hipóteses específicas devem ser analisadas pontualmente […]”.
Após a decisão contrária do juiz, o promotor voltou à carga no último dia 16. Ele argumentou que, “diferentemente ao que foi propagado nas redes sociais, inclusive, pela própria Prefeita, a presente ação civil pública não tem como escopo promover a defesa de medicamento A ou B para distribuição indiscriminada, mas teve o propósito, a título ilustrativo e exemplificativo, de demonstrar a existência de dados relativos à alternativa para minimizar a sobrecarga do sistema de saúde […].”
O promotor pediu ao juiz a reconsideração da decisão anterior e, de novo, a suspensão dos efeitos do decreto. O pedido ainda está sendo analisado pelo juiz.
‘Operamos no limite da exaustão’, diz a prefeita
Além do promotor, a Prefeitura de Palmas enfrenta várias ações judiciais movidas por donos de comércio, em especial restaurantes, contra vedações do decreto. E a Justiça, segundo a prefeita, já concedeu 17 decisões liminares a fim de autorizar funcionamento de empresas.
“Só em um sábado, num único dia, apareceram seis oficiais de Justiça para me entregar uma intimação em casa. Infelizmente as desigualdades sociais são gritantes nesse momento também nesse aspecto. O pequeno comerciante não tem advogado, mas o dono do maior restaurante contrata um bom advogado e consegue obter uma liminar. Aí as pessoas me perguntam: ‘mas por que Fulano pode funcionar e eu não posso?’ O que eu tenho dito é que a vida vem em primeiro lugar. Se a gente não estiver vivo, não há comércio, não há economia, não há nada”, disse Cinthia.
O vírus segue implacável em Palmas. “As equipes de saúde estão trabalhando no limite da exaustão. E ainda tem gente lutando para ter festa! Não é hora de celebrar nada. Operamos no limite. Os pacientes antes não demandavam tanto oxigênio quanto agora. Essa nova cepa veio muito mais agressiva, o comportamento mudou, depois de 10, 12 dias, o paciente tem uma piora significativa, elas têm embolia. A faixa etária hoje não tem grupo específico. Esta pegando Raimundo e todo mundo. Pessoas com 32 anos, sem uma comorbidade vai a óbito do nada. Muitos casos de embolia pulmonar.”.
Com informações do UOL Notícias