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Pandemia faz sete milhões de mulheres deixarem o mercado de trabalho

Márcia da Conceição Gomes, 47 anos, trabalhava como empregada doméstica há quase 12 anos para a mesma família e foi demitida no final de abril Foto: Leo Martins / Agencia O Globo

A crise causada pelo coronavírus é mais dramática para as mulheres e empurra boa parte da força de trabalho feminina de volta para casa. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnadc) mostrou que 7 milhões de mulheres abandonaram o mercado de trabalho na última quinzena de março, quando começou a quarentena.

São dois milhões a mais que o número de homens na mesma situação. Além da demissão, elas têm mais dificuldades para procurar uma vaga e se manter no mercado.

Pelos cálculos do pesquisador Marcos Hecksher, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é primeira vez nos últimos três anos que a maioria das mulheres está fora da força de trabalho (que são os que estão trabalhando ou procurando emprego).

— Se a participação feminina ainda fosse a média dos três anos anteriores, o esperado seria haver 46 milhões de mulheres na força de trabalho e 41 milhões fora dela. A maioria das mulheres estava na força de trabalho. Agora, a maioria ficou fora — afirma Hecksher, que desagregou os dados trimestrais do IBGE em quinzenais, para isolar o período inicial da quarentena.

Com a quarentena, o número de desempregados (aqueles trabalhadores que tomaram alguma providência para conseguir emprego) não reflete com precisão a crise no mercado. A Pnad Covid-19, com dados de maio, mostra que 17,7 milhões de trabalhadores não conseguiram procurar trabalho por causa da pandemia.

No trimestre inteiro, que inclui dados de janeiro e fevereiro, o número de mulheres que perderam o trabalho foi 25% maior que o de homens.

Impacto na família

No dia 8 de abril, foi a vez da comerciária Gabriela de Moura ser demitida. Era caixa numa rede de roupas femininas, que cortou metade dos funcionários e só forneceu a documentação para requerer seguro-desemprego e FGTS.

— Indenização, eles falaram para procurar na Justiça — conta Gabriela que mora com a sogra, o marido e a filha de 8 anos, em Laranjeiras, na Zona Sul do Rio.

Ela já tirou a filha da escola e vai mudar do bairro. A sogra, que custeava o aluguel, perdeu a fonte de renda de uma locação, e a família deve ir morar no Méier, na Zona Norte. O marido, que atua na segurança de redes de dados, continua trabalhando remotamente.

Segundo a socióloga Bila Sorj, da UFRJ, o tipo de trabalho que as mulheres conseguem é fator importante para explicar a pior situação delas:

— Os homens têm mais oportunidade para o teletrabalho. Como estão em ocupações mais precárias, que necessitam de contato, elas são demitidas.

As altas do desemprego e da informalidade desde 2014 já deixaram a mulher em situação mais vulnerável, afirma a economista Lucilene Morandi, que coordena o Núcleo de Pesquisa em Gênero e Economia da UFF:

— Quando há crise, as mulheres geralmente são expulsas mais rapidamente do mercado de trabalho. Apesar de terem um nível educacional mais alto do que eles, estão mais no emprego informal, de meio período e de serviços, setores muito impactados agora.

Segundo Thiago Xavier, da Consultoria Tendências, esse choque aumenta a desigualdade por atingir grupos que já são mais vulneráveis e ganham menos, como as mulheres. Enquanto a população ocupada caiu no primeiro trimestre 3,4% em relação a 2019, entre as domésticas, a queda foi quase três vezes maior: 10,1%:

— A média esconde o que acontece nos grupos específicos. As mulheres estão mais sobrecarregadas com o trabalho doméstico e com as crianças que estão fora da escola.

Depois de quase 12 anos trabalhando como empregada doméstica para a mesma família, Márcia da Conceição Gomes, 47 anos, foi demitida no fim de abril.

E não pretende procurar emprego imediatamente, para não expor o marido, que tem mais de 60 anos e é diabético, à pandemia.

Ela está se sustentando com o salário dele, que trabalha em home office, e com o que sacou do FGTS na demissão. Márcia pediu o seguro-desemprego, mas ainda não recebeu:

— Agora é muito mais difícil arrumar outra coisa. Vou esperar essa fase passar, porque parece que está cada dia pior.

A economista Ana Luiza Neves de Holanda Barbosa, também do Ipea, lembra que, entre as mulheres, há as que estão em situação pior, como as negras e as mães sozinhas:

— O impacto da crise é diferente para uma chefe de família solteira. Também é preciso fazer recorte de raça. As mulheres negras já têm relações mais precárias de trabalho. Uma empregada doméstica não pode trabalhar remotamente. E uma proporção muito alta de mulheres negras tem emprego doméstico.

Aumento da desigualdade

Estudo do economista Naercio Menezes Filho, do Insper, mostra exposição maior das mulheres à recessão: elas são maioria nas atividades mais afetadas pela crise. Representam 52,1% entre as mais vulneráveis. Nas funções menos afetadas, a presença masculina é maior: 61,8%.

Um maior impacto da pandemia para as mulheres já era esperado e vinha sendo discutido por especialistas, diz Ana Luiza Barbosa, do Ipea. A economista ressalta que, nos Estados Unidos, as mulheres também foram mais afetadas que os homens pelo desemprego, ao contrário do que aconteceu nas últimas grandes crises econômicas, como a de 2008.

— Em geral, quando se tem uma crise econômica muito forte, os homens são mais afetados pois tradicionalmente estão mais presentes em setores da indústria, da construção. Já as mulheres tem presença maior nos empregos menos qualificados, na atividade informal e nas funções em que há mais rigidez em relação ao trabalho remoto — explica.

Ana Luiza avalia que a crise atual deve aprofundar as desigualdades de gênero, mas pode abrir caminho para novas relações de trabalho para mulheres:

— A crise aumenta a desigualdade de gênero e raça. Por outro lado, há uma força que é a reestruturação do trabalho, uma flexibilização para facilitar o trabalho em casa e conciliar com o cuidado dos filhos. Pode beneficiar as que já têm emprego formal e fragilizar quem já é mais afetado .

Lucilene Morandi, da UFF, prevê que a alta da desigualdade vai ter efeito a longo prazo:

— No novo normal, é preciso que existam políticas específicas. Não dá para se pensar política pública sem fazer o recorte de gênero e raça. Sem isso, não se faz uma política pública adequada.

— Eu havia pedido para tirar os 23 dias restantes de férias que eu tinha direito, porque moro com meu marido, que é do grupo de risco da Covid-19 — diz Márcia.

Fonte: O Globo