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Promotora cria rede de apoio e reúne 700 “justiceiras” contra violência

Ao ser vítima de violência doméstica, uma mulher sabe como proceder? Para quem recorrer quando se precisa conhecer seus direitos e buscar apoio emocional, jurídico e psicológico? Num período em que se acredita que o isolamento social, aliado à crise financeira e abuso de álcool e drogas possa alavancar o número de mulheres agredidas em casa, nasceu uma rede de justiceiras – mulheres com diversas formações voltadas para apoiar, voluntariamente, outras mulheres por meio do Whatsapp —(11) 99639-1212.

Em quarentena com os filhos após voltar dos Estados Unidos, a promotora de Justiça de São Paulo Gabriela Manssur conta que a necessidade de isolamento fez o projeto sair mais rápido do papel e que se surpreendeu ao receber 700 pedidos de mulheres que queriam ser voluntárias no projeto.

Em entrevista a Universa do UOL, a promotora fez questão de destacar que a violência contra mulher não tem como causa o confinamento.

“É importante dizer que a violência contra a mulher é um fenômeno que está no nosso dia a dia. A visibilidade que a quarentena trouxe para o tema, no meu entendimento, é importante, mas desnecessária porque isso já ocorria antes. O confinamento não é a causa da violência contra a mulher, mas intensifica essas situações. Por exemplo, o aumento de convivência pode fazer com que aumente o controle, a posse, a humilhação e, muitas vezes, a agressão física acontece pela primeira vez. Mulheres que não percebiam que viviam relacionamentos abusivos, porque tinham altos e baixos, passaram a perceber”, disse.

Leia a seguir trechos da entrevista por telefone feita por Universa com a promotora Gabriela Manssur.

UNIVERSA: De acordo com a ONU Mulheres, com o isolamento social há risco de aumento na violência contra a mulher. No Brasil, as ligações para o Ligue 180 subiram desde o início da quarentena. Qual o motivo desse aumento?

MANSSUR: É importante dizer que a violência contra a mulher é um fenômeno que está no nosso dia a dia. A visibilidade que a quarentena trouxe para o tema, no meu entendimento, é importante, mas desnecessária porque isso já ocorria antes. O confinamento não é a causa da violência contra a mulher, mas intensifica essas situações. Por exemplo, o aumento de convivência pode fazer com que aumente o controle, a posse, a humilhação e, muitas vezes, a agressão física acontece pela primeira vez. Mulheres que não percebiam que viviam relacionamentos abusivos, porque tinham altos e baixos, passaram a perceber.

De modo geral, não apenas no contexto masculino, há situações de conflito e aumento de pressão social, psicológica, medo e insegurança. Os homens não estarem cumprindo o seu estereótipo de masculinidade tóxica e deixando de receber o seu dinheiro também são motivos [para aumento da violência].

Comportamentos enraizados no machismo e no sentimento de posse e inferiorização da mulher fazem com que alguns homens que estejam frustrados acabem ‘descontando na mulher’.

Relacionamentos podem vir a se tornar abusivos com o confinamento?

Sim. Um conflito com menos paciência, o contato constante, o ciúme, e, muitas vezes, até o uso de álcool e drogas podem desencadear comportamentos que eram agressivos mas não estava sendo explícitos no relacionamento.

Veja um caso que peguei neste período: uma mulher, [quando estava] no celular [antes do isolamento] apenas reclamava: “Ele era muito ciumento, me controlava um pouco, ficava me perguntando com quem eu estava falando e quem eram as minhas amigas”. Havia um controle, mas ela não se sentia em um relacionamento abusivo. Por causa do coronavírus, muito preocupada, ela começou a ficar mais [tempo] no celular vendo as notícias, e em contato com a família e amigas. Isso trouxe uma desconfiança dele de que ela estava o traindo e ela foi agredida. Aí houve uma situação de violência que nunca havia se manifestado antes.

A senhora está à frente do projeto “Justiceiras”, lançado no final de março. Por que criá-lo agora?

Nós criamos um formulário para a inscrição de voluntárias e as organizamos em frentes de atuação jurídica, psicológica, assistencial e médica. Mulheres que estejam vivendo uma situação de violência, ao enviar uma mensagem para o número de Whatsapp, recebem um link para preencher um formulário. A partir desse contato, nós fazemos os encaminhamentos para as voluntárias, que vão acompanhar caso a caso.

Eu criei a “Justiceiras” para suprir a falta de um canal online em São Paulo. Quando surgiu [o Boletim de Ocorrência online, pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo], também surgiu uma outra preocupação. A mulher está preparada para fazer um Boletim de Ocorrência online e sabe quais serão as consequências? Será que acha que ele vai ser preso se fizer a denúncia, sabe qual será o andamento daquele ato? Consegue pedir uma [medida] protetiva ou sabe que está em uma situação emergencial?

Já vinha pensando nisso, mas não tinha colocado em prática porque é preciso uma logística e uma articulação ampla.

[Na quarentena] eu vi a necessidade de sua criação e acabei emergencialmente me reunindo com outros dois institutos: o Bem Querer Mulher e o Instituto Nelson Willians. E criarmos conjuntamente uma rede de apoio online para as mulheres em situação de violência. [O objetivo é] sanar as dúvidas, ter uma orientação psicológica, acolhimento entre mulheres que já passaram pela situação e querem dividir essa experiência e acolhê-las.

Qual a principal exigência para quem quer se tornar uma “justiceira”?

É exigido, obviamente, que tenha a inscrição no seu órgão de fiscalização da profissão. Ou seja, OAB [para as advogadas], CRP [para as psicólogas], CRM [para as médicas], e também uma exigência para as assistentes sociais [CRESS]. Quem não estiver dentro dessas capacidades técnicas fará parte da rede de apoio e acolhimento. Eu acredito que toda mulher que esteja numa situação de violência precisa ter várias frentes a seu favor: jurídica, psicológica, algumas vezes a médica e assistencial. Mas também ter aquela melhor amiga com quem ela possa chorar, desabafar e ouvir palavras de incentivo e apoio.

O número de voluntárias que responderam ao chamado -700 mulheres- surpreendeu a senhora?

Eu fiquei surpresa com o número de voluntárias. Eu falava assim “se tiver cem voluntárias vai ser ótimo” e nós tivemos 700. Eu lembro que com 24 horas de divulgação só no meu instagram tínhamos 300 inscritas. Em quatro dias nós tivemos 700 e fechamos as inscrições para organizarmos a rede. O perfil dessas mulheres é variado, e esse dado também me surpreendeu. Nós temos promotoras, juízas federais, delegadas, bombeiras, enfermeiras, médicas, advogadas, psicólogas, assistentes sociais. Mas também mulheres que passaram por situação de violência e querem ajudar.

Elas vão passar por capacitação? Em um primeiro momento, nós pensamos em uma capacitação técnica para o atendimento, mas não tínhamos tempo. Então, nós convidamos especialistas, e cada uma de nós gravou um ou dois vídeos, que foram encaminhados para os grupos [de Whatsapp] de voluntárias. As líderes estarão à disposição das voluntárias para esclarecer dúvidas em situações que não consigam resolver quando estiverem atendendo uma vítima. Posteriormente, vamos formar um curso gratuito online para capacitar todas essas voluntárias nas suas diversas áreas.

Quais resultados a senhora já observa?

Nós recebemos na primeira semana em média 300 chamadas de Whatsapp e já conseguimos dar encaminhamento a pelo menos 80. Nosso maior desafio é simplificar o caminho para receber o formulário, ou seja, uma plataforma de inteligência artificial e tecnológica para organizar a demanda. Queremos criar uma plataforma que possa viabilizar e automatizar o trabalho, analisando o pedido de ajuda, decidindo para qual área será encaminhada e qual frente responderá pelo caso.

A ação deve continuar quando o isolamento social chegar ao fim?

É o que pretendemos. Tendo em vista o número de pedidos de ajuda, de voluntárias, a necessidade e a falta de um serviço como esse, nós queremos que ele venha para ficar e que, de fato, traga para as mulheres um apoio e uma orientação.

O lema do projeto é “Fique em casa, mas saia da violência doméstica”. A senhora acredita que é possível que uma mulher em situação de violência durante o isolamento consiga reverter esse quadro?

Sem dúvida, com todos esses mecanismos à disposição dela, vai de fato fazer com que se sinta fortalecida e apoiada. E quando [o caso] chegar ao conhecimento das autoridades competentes, elas poderão decidir a necessidade de medidas protetivas e se essa ordem judicial será cumprida.

Na semana passada, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo passou a permitir registros online para esses casos. É uma medida eficaz?

Em São Paulo, não houve aumento no início [do isolamento], pelo contrário, nós percebemos uma diminuição no comparecimento de mulheres nas delegacias e Casa da Mulher Brasileira. Inclusive no pedido de medidas protetivas. O trajeto até a delegacia, o trabalho, não ter onde deixar os filhos ou não ter como ir até lá porque está sob os olhares do agressor são os principais motivos de desistência [do registro da ocorrência]. No entanto, acredito que precisa ser criada uma articulação com o Ministério Público para que esses boletins sejam encaminhados para a Promotoria de Justiça especializada no combate à violência contra a mulher. E, ainda, que haja a possibilidade de um pedido de medidas protetivas de urgência.

Com informações do Universa – Uol