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Para apoiar vítimas de violência doméstica, tatuadora de Mogi das Cruzes cria projeto que cobre cicatrizes gratuitamente

As marcas que antes lembravam a dor da violência agora se escondem entre desenhos que representam delicadeza e, ao mesmo tempo, força. Há seis anos, a tatuadora Fabiana da Silva Rosetti, de Mogi das Cruzes, criou um projeto que cobre com tatuagens as cicatrizes de mulheres vítimas de agressões.

Desde que começou, o projeto já fez cerca de 100 tatuagens e contribuiu para o resgate da autoestima e superação das vítimas. “A pessoa nunca vai esquecer o que aconteceu, mas, pelo menos, quando ela olhar no espelho, ela não vai lembrar daquilo. Ela vai ter na memória, mas não a todo momento. De repente, aquele desenho vai ser um recomeço para ela”, afirma Fabiana.

Fabiana tem 42 anos e há 18 domina a arte de desenhar na pele. Ela conta que a ideia surgiu quando conheceu a história de uma profissional que fazia o mesmo em outra região do país. Decidiu colocar em prática em seu estúdio, localizado na Vila Paulista, e hoje faz cerca de quatro coberturas de cicatrizes por mês.

“Começou a ter muita procura de tatuagem em cicatriz, só que esse procedimento fica quase o dobro do valor de uma tatuagem normal, porque não dá para fazer qualquer desenho, é mais cuidadoso, leva mais tempo. Às vezes, a pessoa perguntava o valor e falava que não tinha condições, até que eu vi uma tatuadora que fazia uma campanha parecida e decidi fazer o mesmo. Começamos com uma por mês. Agora a gente consegue fazer até quatro ou mais, dependendo do caso”, explica a profissional.

Para fazer a tatuagem, Fabiana pede que a cicatriz tenha mais de dois anos, pois nesse período o processo de cicatrização ainda pode ser alterado. O projeto é exclusivo para mulheres e cobre marcas de cirurgias que deram errado, automutilação e, principalmente, violência doméstica, o que representa 60% dos atendimentos.

Cada cicatriz uma história

As histórias ouvidas por Fabiana ao atender uma mulher vítima de violência são dolorosas. Além da pele desenhada, no estúdio as clientes também encontram acolhimento e a oportunidade de compartilhar um pouco da dor que sentem.

“A gente ouve muita coisa. Elas falam por cima, a princípio, e quando vêm fazer a avaliação elas se abrem. Já tive casos de mulheres que o marido jogou água fervendo por ciúmes. Já tive casos de óleo quente, tiro, facada”, afirma Fabiana.

As marcas, na maioria dos casos, estão em mulheres que encontraram no companheiro a figura de um vilão. Como é o caso de uma jovem de apenas 26 anos, que preferiu não se identificar. Abusada pelo pai após a morte da mãe, foi morar na rua. Acabou conhecendo o pai de um dos seus filhos e, com ele, o medo da violência.

“Com uns dois meses [de relacionamento] ele começou a me bater, me agredir. Me batia muito. Ele começou a bater com pau, com tudo o que vinha na frente ele batia. Tudo, tudo. Até de cinta, parecia que era meu pai”.

O relacionamento continuou e ela acabou engravidando. Mesmo a espera do filho, foi agredida. A jovem relata que conseguiu um emprego e que, finalmente, saiu da casa onde vivia com o homem. No entanto, drama continuou.

“Ele pegou um vidro de estante, aí ele foi e tacou. Pegou bem na minha perna. Era para me acertar, mas eu fui para trás e pegou em assim na perna. Eu tomei seis pontos”, relata a vítima.

As agressões só acabaram meses depois, quando ela passou a registrar boletins de ocorrência. Hoje o agressor está solto e ela tem outro relacionamento. “Já tem quase cinco anos que eu separei dele e até hoje eles ligam para dar depoimento, mas fica só nisso. [Mas] eu consegui, graças a Deus, recuperar minha vida”.

Continuar trabalhando e retomar os estudos ajudaram a jovem a continuar. Atualmente a cicatriz está coberta por flores e, para ela, a tatuagem fechou com chave de ouro o processo de superação.

“Com essa campanha da Fabi, me ajudou bastante também porque você não fica mais olhando para aquilo. A cicatriz nem é tanto no corpo, é na alma, mas toda vez que você fica olhando, você lembra o que aconteceu”, desabafa.

Embora as cicatrizes pelo corpo não sejam muitas, outra cliente do estúdio de tatuagem também sofre com as memórias da violência doméstica. Conheceu um homem na adolescência, iniciou um relacionamento e engravidou com apenas um mês de namoro. Nas palavras dela, tudo eram flores, até que ele se revelou.

“Com seis meses [de gestação] foi o primeiro tapa. Foi o primeiro chute na barriga. Assim se prolongou. Morava com a minha mãe na época, [depois] morei com ele por cerca de seis meses. Ele acabava saindo, usando entorpecentes muitas vezes”.

Quando voltava para casa, sob o efeito das drogas, o ex-companheiro a agredia. Em um desses episódios, a mulher, que prefere não falar o nome ou a idade, recebeu facadas no braço depois de passar dias trancada dentro da própria casa com a filha doente.

“Ele me trancou dentro de casa. Colocou cadeado na janela, na porta. Assim foi. Aí ele voltou depois de três dias, minha filha com febre. Nessa que ele voltou, ele estava transtornado, não sei o que houve, e ele me acordou no meio da madrugada para colocar meu braço em cima da mesa e começou a esfaquear a minha mão”.

“Eu deixei, com medo de que acontecesse algo pior. Acordar minha filha, fazer alguma coisa com a minha filha”, relembra a vítima.

O relacionamento acabou e o homem chegou a ser preso, mas agora está solto. Hoje ela sente que, apesar do trauma, conseguiu continuar. Com as flores recém-tatuadas, elas espera esquecer de vez o que passou. “Ficou muito lindo, perfeito. Cobriu tudo aquilo que eu não queria mais na minha vida”.

Arte que transforma

Mais do que esconder a cicatriz, para a psicóloga Priscilla Paccitto, as tatuagens ajudam a vítima de violência a ressignificar o sofrimento causado pelos relacionamentos abusivos. Ela diz também que é um ato de empoderamento, pois resgata a autoestima com algo que é de total escolha da mulher.

“A cicatriz é como quando vemos uma foto e pensamos em como foi aquele dia. Ela revive aquela dor, ela olha a cicatriz e volta para o tempo. Utilizar a arte, utilizar a criatividade para tentar suprir essa dor, pode sim colaborar. É como se, não que ela vá esquecer, mas ela vai trazer novos significados. Vai tentar olhar com outros olhos, ver que a vida continua. Ver que ela passou por um momento extremo, mas que ela pode continuar”.

Com as marcas escondidas por um desenho bonito e que expressa um pouco do que a mulher quer para si, segundo a psicóloga, a relação com os filhos também melhora, pois para de girar em torno do problema e inicia sua superação.

“Junto com a profissional, ela tem um ato de empoderamento. Ela escolhe o que quer tatuar. Ela resgata a autoestima. Depois, vai poder olhar para aquela nova marca e dar um novo significado. Muitas vezes as pessoas tem que justificar. Alguém pergunta o que é aquela marca e a mulher tem que mentir. A tatuagem pode mudar isso. Ela não vai precisar se explicar. Ela vai compartilhar aquilo só com quem ela quer. A tatuagem pode colaborar por dar novos significados”, afirma.

A tatuadora Fabiana sabe bem dos benefícios proporcionados pela iniciativa, mas diz que preferiria que ela não precisasse existir. “Por mim eu queria que não houvesse mais cicatrizes, não porque eu não quero fazer, mas porque a gente ia saber que não existe mais esse tipo de coisa, essa atrocidade. São coisas horríveis que a gente acaba escutando. A gente acaba chorando junto com a pessoa”, reflete.

Dados

Em Mogi das Cruzes, atualmente, cerca de 471 vítimas de violência doméstica com medidas protetivas são acompanhadas pela Patrulha Maria da Penha, segundo a Prefeitura. O programa começou em 2018 e já realizou 50 fragrantes, com 50 detenções.

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Um levantamento realizado pelo G1 aponta que o Brasil teve um aumento de 7,3% nos casos de feminicídio em 2019 em comparação com 2018. São 1.314 mulheres mortas pelo fato de serem mulheres – uma a cada 7 horas, em média.

Desde 9 de março de 2015, a legislação prevê penalidades mais graves para homicídios que se encaixam na definição de feminicídio – ou seja, que envolvam “violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Os casos mais comuns desses assassinatos ocorrem por motivos como a separação.

*Com informações do portal do G1