Opinião

Medos, mitos e máquinas, por Yeda Crusius

Vivemos hoje no palco da mais moderna das guerras, a das Comunicações. É bom conhecermos um pouco do passado para melhor avaliarmos para onde estamos indo. Quem podemos buscar para dar fim a essa moderna guerra, que mata reputações e elege olhando para trás, num passado que não existe mais e não pode ser prometido como o futuro que salva? Mito, deus ou máquina? Porque Máquina.

Uma história que me encanta e comove é a de Alan Turing, o criador da Ciência da Computação, e do computador. Com a equipe que comandou em Oxford, deu a vitória da guerra à Inglaterra. Foi ela punido, julgado criminoso em 1952, confessando-se homossexual num processo movido contra ele por isso. Era crime.

Amante de A Bela Adormecida (1934), é tido como verdadeiro que o símbolo da Apple, a maça mordida, é em sua homenagem, pois teria cometido suicídio comendo a maça por ele envenenada com cianureto, não suportando a pena a ele imposta de castração química. O “perdão” pelo crime foi concedido pela Rainha Elizabeth II em 2013. Tudo é mos-trado em livros e no filme de 2014,

O Jogo da Imitação. Comovente. Alan Turing é conhecido também pelo Teste de Turing para a Inteligência da Máquina. Em célebre artigo escrito depois da guerra, e publicado na revista Mind, n.59, p.442, 1950, Universidade de Oxford, “Computing, Machinery and Intelligence”, fez a pergunta original: “As Máquinas Podem Pensar?” Hoje continuamos nos perguntamos se a máquina pode substituir o homem. Ficções científicas desde ele foram criadas para imaginar como sim e como não. A ele devemos tanto que não cabe aqui resumir.

Cito para referenciar que no passado uma máquina enfrentou e venceu a guerra interceptando e decodificando mensagens por uma nova máquina. A mesma máquina até hoje é usada para fazer a moderna guerra, e Intercept é o nome da empresa que inferniza espionando e divulgando mensagens jogando-as no mundo das comunicações. Porque Medo.

Se não conhecemos o passado, temos muita dificuldade em pensar o futuro que tanto assusta. O desconhecimento do futuro sempre teve o seu espaço na criação das artes e das ciências. Enfrentando o medo do futuro, as civilizações criaram seus deuses, muitos, um para cada personagem, como na Grécia e em Roma do século V antes de Cristo.

As religiões monoteístas que vieram depois adaptaram esses personagens, mas não como deuses. Várias religiões, cada qual com seu Deus (com maiúscula), se constituem hoje civilizações não para fazer guerras entre elas, mas agregando quem se pergunta sobre a vida, pela fé nesse Deus. A expressão deus ex machina foi o expediente da tragédia greco-romana usado para responder, fazendo surgir de súbito um deus-máquina para solucionar casos que os homens, ignorantes por certo do futuro, não davam conta de solucionar.

Hoje esse é o nome de uma série de videojogos, uma febre. Quem deu o nome conhecia do riscado. Porque Mito. Como religião não se discute, se professa, vou tratar aqui de personagens de antigas civilizações, a greco-romana, panteísta, para tratar de um assunto atualíssimo: o Mito. Não a máquina, que já dominamos, nem um Deus, mas um mito. Bolsomito.

Uma máscara pode reforçar uma identidade, ou escondê-la. Na arte do teatro, tragédias e comédias são simbolizadas por máscaras para representar homens e mitos. As máscaras eram muito utilizadas no teatro grego pra expressar já em si sentimentos, tanto o feminino quanto o masculino.

As mulheres eram excluídas totalmente da pólis (cidade), não sendo consideradas cidadãs, portanto eram proibidas de atuar, tendo seus papéis limitados ao cumprimento dos afazeres domésticos e de procriação. Eram parte do roteiro, mas não podiam atuar.

Em seu lugar, homens usavam máscaras e perucas para representar personagens de ambos os sexos, masculino e feminino. Ainda bem que mudou. Mulheres são cidadãs nas sociedades democráticas de direitos. Podem ser o que quiserem, nessas sociedades. Bem, mais ou menos. Bem, a luta continua. Hoje pessoas mascaradas, com rostos cobertos, estão em toda parte nas manifestações de rua. As sociedades ainda são marcadas por problemas tão primitivos quanto a pobreza e a desigualdade porque não há ainda o reconhecimento de que está no feminino na política a possível solução para eles. Creio que chegaremos lá, nessa consciência de que este é um século para nos curarmos desse defeito de termos poucas mulheres na política. Sem máscaras. Não sei bem como começou aqui no Brasil o “grito de guerra” Mito. Mas foi depois que o Deputado Jair Messias Bolsonaro, o Capitão, informou que seria candidato a Presidência da República, principalmente a partir de 2016, o ano da maior recessão da nossa História.

Onde Bolsonaro aparecia havia uma pequena multidão aos gritos de “Mito! Mito! Mito”. Vestindo o figurino do politicamente incorreto, prometendo cumprir “bandido bom é bandido morto”, com seu gesto de arminha, Bolsonaro avançou sobre o cansaço de uma sociedade que vivia a realidade do desemprego e o fantasma da volta da inflação.

Temendo o futuro, acossadas pelos desastres naturais ou pela violência crescente do mundo de hoje, pessoas ainda tendem a perguntar ao seu oráculo preferido o que já pergunta a música: “o que será o amanhã”. Muitas recorrem a algum mito que lhes reduza a ansiedade perante um futuro incerto. O que ouvem daqueles que deveriam decidir e aplicar políticas que dessem solução aos problemas mais urgentes não lhes agrada. Quebrada a confiança entre governantes e governados, cresce a escolha por algo “novo”. Um mito.

Quando isso acontece, em qualquer parte do mundo, o discurso fica polarizado. Eleições resultam em surpresas que lembram um passado do qual as lembranças são gloriosas. Estouram manifestações de rua por algum pavio aceso. Tem sido assim agora no mundo. A estagnação eco-nômica em meio a tantas alternativas de consumo rouba a visão de um futuro melhor. A maior parte dos países enfrenta uma resistente estagnação – com poucas exceções como a da China, que vai ocupando mercados e fatias de poder do mundo.

Agora Malan. Em um dos artigos mais recentes, Pedro Malan (OESP, 11/08/2019), nosso engenheiro/economista condutor no Real no Governo FHC, cita o clássico Italo Calvino, sobre a linguagem dos mitos que vem muito a calhar para o debate de nossos dias. Malan, como é de seu feitio, enfrenta esse debate propondo. Quem já fez pode propor, tem credibilidade. Ressaltando que a visão do futuro exige tanto o reconhecimento dos desafios do presente quanto a consciência do que foi conquistado no passado. Isso se dá não apenas no plano individual, mas também no plano social.

“Acreditamos, nós também, que o desejo de um futuro a ser conquistado é garantido pela memória de um passado perdido? Ou no contrário – que teremos um grande futuro independentemente da qualidade de nossa memória, e de nosso entendimento sobre o passado? É difícil alcançar visão de futuro ali onde não há consciência social do passado e reconhecimento dos principais desafios do presente. Desafios que sempre serão o legado de nossas ações e omissões, e de nossas cambiantes formas de relação com o resto do mundo. Escrevi na introdução a um livro recente: “Ao longo destes 130 anos de República, não sabíamos (como não sabemos hoje) se ao caminhar estávamos pisando nas cinzas do passado ou nas sementes do futuro, juntas e misturadas, como sempre, sob nossos pés e em nossas memórias. Sempre conviveremos com o peso do passado e a promessa do futuro – e ambos têm traços de teimosa permanência”.

Acrescento à figura criada por Malan do nosso caminhar (incerto) sobre as cinzas do passado ou as sementes do futuro, uma figura mitológica que nos diz muito, a de Jano, deus romano das mudanças e das transições. Com sua face dupla, uma que olha o passado e a outra que olha o futuro, Jano mitológico é o deus das decisões, das escolhas, dos inícios. Mantive sempre à cabeceira da cama o livro Jano, de Arthur Koestler, autor também do celebrado O Zero e o Infinito (1940), livro que causou um verdadeiro cisma na esquerda, da qual fazia parte.

Um estudo de um homem só diante de uma decisão impossível, o romance é de embate ideológico entre o indivíduo e a coletividade, que se passa num país dominado por um Estado Totalitário. Fascinante. Volto ao Brasil. Sua eleição fez do Mito Bolsonaro – o Bolsomito, a evidência da busca de uma figura externa, um mito que promete “mão for-te” para resolver o que a pessoa por si só não consegue, e que frente à política sugere a entrega dos destinos do país a uma figura que se pro-põe “nova”. Nem mito nem novo, mas bem sincronizado com sua época, Bolsonaro tem seus 4 anos de mandato conquistado no voto para dizer a que veio. Se mito, se homem, é esperar para saber.

*Yeda Crusius é presidente Nacional do PSDB-Mulher.Ministra do Planejamento no loja virtual governo Itamar Franco (1993), governadora do RS (2007/2010) e deputada Federal por quatro mandatos.