Opinião

“O desmonte da nossa diplomacia”, por Mara Gabrilli

“Não é qualquer um que entra na nossa casa. Nem será qualquer um que entrará no Brasil via pacto adotado por terceiros.” Esta foi uma das primeiras declarações de impacto internacional proferidas por Jair Bolsonaro ao assumir a Presidência e declarar a saída do Brasil do Pacto Global da Migração.

Na ocasião, o chanceler Ernesto Araújo assegurou que os imigrantes eram bem-vindos ao nosso país, mas não de forma indiscriminada. Ao diplomata, no entanto, faltou fazer contas: nosso país tem apenas 1 milhão de residentes estrangeiros – menos de 0,5% do total da população brasileira. Em contrapartida, há 3 milhões de brasileiros vivendo fora do país. Todos agora desassistidos.

Por outro lado, se opondo aos princípios da reciprocidade, desde março está em vigor um decreto presidencial que dispensa — de forma unilateral — a necessidade de visto para entrada de cidadãos dos Estados Unidos, Canadá, Japão e Austrália.

Com a decisão, o Brasil ganha incentivando o turismo, mas abre mão de um acordo migratório promissor para se colocar em uma situação de subserviência aos EUA e à política imprevisível de Donald Trump, a quem o presidente já mostrou grande afeição, mas pouco senso crítico para ponderar decisões.

Não fosse, aliás, a capacidade mesmo que tardia da ala militar e de ruralistas, de convencer o presidente a voltar atrás da decisão de transferir a embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém, o prejuízo do nosso país em exportações seria bilionário. Atualmente, o Oriente Médio representa 10% das exportações brasileiras. Israel, por outro lado, menos de 1% do comércio exterior do País.

A inabilidade do governo em conversar com o restante do mundo e manter acordos firmados nos coloca em risco em diversos âmbitos além do prejuízo em cifras. Perdemos em conquistas imensuráveis, como o reconhecimento de sermos uma nação aberta ao diálogo, ao acolhimento de outros povos e aos direitos humanos.

Características do nosso soft power (habilidade de um país conseguir o que deseja sem fazer uso de arsenal bélico, mas de sua imagem, cultura e paciência) que hoje corre riscos diante de uma política internacional ufanista e inclinada – ora por religião, ora por convicções pessoais do próprio presidente.

Durante a 63.ª sessão da Comissão da ONU sobre a Situação das Mulheres, ocorrida em março, o governo brasileiro deixou isso claro ao afirmar que não deveria haver nenhum tipo de interferência do Estado que pudesse dissolver ou enfraquecer a “estrutura da tradicional família”. Este não é o posicionamento esperado de um governo que surgiu com a promessa de livrar o Brasil de ideologias.

Ideologizar parece ser o verbo da vez. Recentemente, mais uma vez por meio de decreto, o governo extinguiu todos os cargos de peritos do Mecanismo Nacional contra a Tortura, organismo que desempenhava papel fundamental na exposição de casos graves de tratamento cruel, desumano e degradante em penitenciárias por todo o País.

O desmonte na fiscalização pode ampliar a violência nos presídios e consequentemente nas ruas. Afinal, o melhor parâmetro que se pode ter sobre a segurança pública de uma nação é medido pela situação de seus presídios. Torturar gente não é estratégia de correção social. Ao contrário, devolvemos à sociedade o que oferecemos à população carcerária. E o Brasil tem hoje a terceira maior população carcerária do mundo. São cerca de 720.000 detentos e um vasto histórico de violações em instituições estatais.

O governo, na tentativa de coibir a violência, optou (novamente por decreto) – flexibilizar o porte e a posse de armas da população. E o fez por meio de um texto – sem precedentes em todo o mundo – que, entre outros ineditismos, aumentava de 50 para 5.000 o limite de projéteis que podem ser adquiridos anualmente por uma única pessoa. O número extrapola – até mesmo nas terras de Trump – a quantidade considerada razoável para ser consumida para defesa pessoal.

Passado o primeiro semestre de mandato, o governo ainda tem o desafio de resolver a equação negativa de suas relações com o mundo. Temos mais erros que acertos a comemorar, mas ainda há tempo de conciliar interesses do Brasil com outros países do mundo, inclusive com ideais alinhados àqueles de primeiro mundo.

Nações desenvolvidas não ignoram pactos internacionais que foram pensados para proteger, por exemplo, o meio ambiente, pois entendem que as mudanças climáticas podem ameaçar o progresso e empurrar mais de 120 milhões de pessoas para a pobreza extrema. Nações que visam a prosperidade entendem também que o respeito à diversidade humana e a igualdade de gênero são pautas que impactam além das relações internacionais, a economia em seu próprio território.

Como senadora e membro de um Comitê na Organização das Nações Unidas, testemunho no dia a dia a importância das relações de cordialidade e respeito na diplomacia entre os países. Quem quer crescer não compreende organismos como a ONU como mera sigla. Muito pelo contrário: quem está ao lado do desenvolvimento não compactua com retrocessos e não nega a importância desses mecanismos. E o presidente já o fez certa vez, quando manteve o Ministério dos Direitos Humanos, acenando positivamente aos brasileiros mais vulneráveis, e que tanto carecem da proteção do Estado.

Apesar das recentes decisões da política externa, ainda mantemos o prestígio da nossa diplomacia, reconhecida e respeitada em todo o mundo – disso não podemos abrir mão.

Já passou da hora de descer do palanque e olhar para o futuro do País e do planeta.

*Mara Gabrilli, senadora (PSDB-SP), publicitária, psicóloga, foi deputada por dois mandatos, vereadora de São Paulo e secretária da Pessoa com Deficiência da capital paulista. Em 2018, em uma conquista inédita para o país, foi eleita membro do Comitê da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Após sofrer um acidente de carro que a deixou tetraplégica, fundou uma ONG, em 1997, para apoiar o para desporto, fomentar pesquisas cientificas e promover a inclusão social em comunidades carentes.

**Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 26/06/2019.