Opinião

“Permissão para matar”, por Malvina Muzskat

Fotos Públicas
Fotos Públicas

Fotos Públicas

O que há em comum entre Sidnei Ramis de Araujo e Steban Santiago Ruiz, esses dois homens que ocuparam os noticiários desse fim de semana? Sidnei, brasileiro, de idade não mencionada, é autor de uma chacina que matou a ex-mulher, o próprio filho e mais onze pessoas da mesma família no dia 1o de janeiro em Campinas, interior de São Paulo.

Steban, 26 anos, americano é autor de uma chacina que matou 5 pessoas e feriu outras 8, no dia 1o no Aeroporto de Fort Lauderdale na Florida.

O primeiro suicidou-se, o segundo entregou-se à polícia sem resistência. O primeiro penalizou a si mesmo, o segundo será penalizado pelo Estado.
Ambos planejaram e anunciaram suas ações. Mas não foram ouvidos.

Sidnei era técnico de laboratório e em 2011 separou-se definitivamente de sua mulher Isamara com quem vinha tendo uma relação conflituada. Aparentemente, a partir dessa data, concentrou-se em nutrir um ódio patológico pela ex, desde que ela, através e com apoio do judiciário, ganhou o direito de atuar sobre o controle dos seus desejos e de seu comportamento.

Sidnei vinha deixando bastante claro através de várias formas de manifestação, há pelo menos 4 anos, o quanto as mulheres, personificadas na figura da ex-esposa, vinham representando para ele uma fonte de repressão altamente ameaçadora, que precisava ser destruída.

Steban é um militar que em 2010 foi enviado ao Oriente Médio, para servir ao exército americano. Depois disso, supõe-se, vem apresentando perturbações de ordem psicológica e há poucos meses se deu ao trabalho de comunicar ao FBI tudo sobre seus delírios, declarando que o governo americano estava exercendo controle sobre sua mente, forçando-o a ver vídeos do Estado Islâmico.

Que há de comum entre os dois homens? Do que estamos falando? De um homem que odeia as mulheres? De outro que odeia os americanos? De dois homens que no dia 1o do ano resolveram “livrar-se “ dos seus fantasmas e saíram por aí matando gente? Como qualificá-los? Terrorista um? Misógino o outro?

Misógino e terrorista foram os primeiros rótulos óbvios, atribuídos apressadamente pela mídia. Apesar de suas ações sugerirem ou se inspirarem nesses modelos, eu não me atreveria a qualificá-los tão rapidamente, antes de voltar minha atenção para uma característica, esta sim, claramente comum à história dos dois: a longa e árdua tentativa de comunicar às “ autoridades competentes “, que precisavam de ajuda, que precisavam ser ouvidos.

Tanto Sidnei que, através das mais variadas formas diretas e indiretas, tentou comunicar-se com a polícia, quanto Steban, que chegou a procurar o FBI, tentaram comunicar a angustia e o desespero a que vinham se sentindo submetidos.

Creio que autoridades responsáveis por ações que incluem conflitos deveriam estar mais preparadas e atentas para escutar o que sua clientela tem a dizer. Há tempos a multidisciplinaridade vem se mostrando absolutamente imprescindível a todos aqueles que, de alguma maneira, estejam comprometidos com serviços voltados para a população, principalmente quando tratando com conflitos.

Admirável seria poder contar com pessoas preparadas para escutar o modo de pensar e sentir das pessoas, de ouvir tudo a respeito de suas intenções e as possíveis ações consequentes a seus sentimentos. Se não, que, pelo menos, uma mídia bem informada e cautelosa se dedicasse a investigar melhor o conteúdo do que está divulgando a respeito de um fato, considerando as consequências de suas opiniões. Bem sabemos o quanto as pessoas adoram encontrar cardápios compatíveis com suas preferências imediatas, o que tem estimulado aos formadores de opinião, cada vez mais, apegar-se a rótulos palatáveis, de alcance popular. Enquadrar a tragédia de Sidnei no rótulo de misoginia ou a de Steban no de ódio, são maneiras pobres e reducionistas de se analisar o contexto dramático em que elas estão inseridas. Tragédias tão obviamente anunciadas como essas, apontam para a mediocridade das pessoas que ocupam lugares de enorme responsabilidade, seja enquanto sentadas na mesa de uma delegacia de polícia seja enquanto atrás de um bureau de queixas do FBI. Desenvolver escuta empática deveria ser uma meta para todos nós, mas torna-se imperdoável quando praticada por autoridades supostamente responsáveis e reproduzida por jornalistas inconsequentes.

Tentar qualificar esses dramas através de definições simplistas e pré-estabelecidas, é uma forma de livrar-se de forma diligente e negligente de um problema, eximindo-se de encarar a complexidade daquilo que está diante de si. Maneira rápida e certeira de sentenciar ao extermínio pessoas inocentes.

Sidnei e Steban não eram apenas misóginos ou terroristas, mas sujeitos que precisaram de ajuda para enfrentar seus próprios fantasmas, e se depararam com não mais que o eco de suas próprias vozes. Precisaram matar para serem finalmente ouvidos.

*Malvina Muzskat – Mestre em Psicologia Clínica, psicanalista, especialista em mediação de conflitos em famílias e organizações.