Opinião

“O amor é a argamassa para reconstruir a vida sem mãe”, por Claudia Collucci

Foto: Corbis Images
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Viver o luto na sua plenitude traz outros significados para a vida

19/07/2016 02h20 – Atualizado às 09h58

Pelas regras atuais da bíblia da psiquiatria, o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), nesta terça (19) encerra-se o prazo para que o luto pela morte da minha mãe seja elaborado. Se durar mais do que isso, ou seja, duas semanas, posso estar com depressão, segundo o manual.

Não me sinto deprimida, mas sim tomada por uma tristeza e um vazio indescritíveis. É como se um pedaço de mim tivesse sido arrancado. Tento me fixar nas boas lembranças, nas quase cinco décadas de amor, carinho e companheirismo, mas os momentos finais de sofrimento ainda sobressaem e machucam muito.

Estive ao lado da minha mãe 24 horas por dia nas três semanas que antecederam sua morte. Acompanhei diariamente o câncer, um adenocarcinoma das vias biliares, roubando o seu apetite, a sua disposição, os seus movimentos e a sua alegria.

A parte pragmática de mim se apoiou nos meses de sobrevida estimados pela literatura médica e correu atrás dos melhores recursos disponíveis em oncologia. Tentava convencer a mim e a ela de que havia esperança. “Vamos ter fé, mãezinha. Fé em Deus e na medicina.” A parte cuidadora encheu-a de pequenos mimos, carinho e amor.

Dona Regina sempre foi uma mulher sábia, além do fato de já ter acompanhado outros casos de câncer na família. Pressentia que para ela não havia chances de cura e temia sofrer muito tempo.
Desde o diagnóstico, começou a se preparar, em silêncio, para a despedida. Ao mesmo tempo, aceitava todas as propostas terapêuticas, como o início da quimioterapia paliativa. O seu inconformismo não era com a doença em si, mas sim com o fato de nenhum médico tê-la descoberto mais cedo.

Minha mãe sempre se cuidou muito bem. Nunca teve vícios, alimentava-se corretamente, fazia caminhadas e era acompanhada por vários médicos do plano de saúde que tinha em Ribeirão Preto (SP).

No primeiro quadrimestre deste ano, ela passou pelo cardiologista (tinha hipertensão controlada), pelo endocrinologista (tinha um distúrbio da tireoide controlado) e pela ginecologista (para o preventivo anual).

Para todos, se queixou de fraqueza e de desconforto gástrico, com eventuais enjoos, vômito e sensação de “estômago pesado”. “É virose”, afirmou um médico. “É a idade”, disse outro, sobre a fraqueza. Minha mãe completaria 80 anos em agosto, mas até o fim de maio estava totalmente ativa.

Na família, as queixas também não causaram grande preocupação porque sempre dona Regina as associava a algum evento ou alimentos suspeitos (uma maionese, no caso de vômitos, ou uma forte gripe, no caso da fraqueza).

O último especialista que minha mãe procurou, em maio, foi um gastroenterologista, mais especificamente um cirurgião. Ela tinha uma hérnia inguinal e, após exame físico, o médico sugeriu a operação. “Doutor, será que eu aguento? Estou me sentindo muito fraca”, disse ela. O médico respondeu. “A cirurgia é simples. Fica tranquila.”

Coube a um geriatra, Eduardo Ferriolli, do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, fazer o que deveria ser a regra para qualquer médico: examinar o paciente por inteiro e escutá-lo. No toque, ele já sentiu o fígado aumentado e pediu um ultrassom, que apontou as lesões no fígado, confirmadas no dia seguinte pela ressonância magnética.

A partir daí, foi uma corrida contra o tempo no Icesp (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo), com biopsia, exames complementares e início da primeira químio, na tentativa de diminuir o inchaço do fígado, que já pressionava o estômago, gerando dificuldade de alimentação.

No dia em que antecedeu a sua morte, um domingo, dona Regina amanheceu mais calada do que o de costume. Perguntei: “mãezinha, você está com medo?”. De pronto, ela respondeu: “Só tenho medo de ficar doente por muito tempo”.

Esse medo estava diariamente presente nas orações. Católica praticante, ela não pedia cura, mas sim para que não sofresse. As dores mais fortes só surgiram nas 24 horas antes da morte, ocorrida exatas três semanas após o diagnóstico. O tumor obstruiu as vias biliares, levando à falência do fígado e a um choque séptico.

Minha mãe ficou lúcida até o fim, ouviu minhas falas de amor e as retribuiu, recebeu os últimos carinhos da minha irmã e guardou o sorriso derradeiro para o meu pai, seu companheiro de quase 50 anos.

Não sei quanto tempo vai durar o meu luto e não estou preocupada com isso. A comida ainda não tem sabor, mas eu a como mesmo assim. Não sinto o mínimo prazer com as aulas de ioga ou com a corrida, mas ainda assim estou me movimentando. Trabalhar está difícil, mas estou me esforçando.

Não sou avessa aos antidepressivos e recorrerei a eles caso sinta necessidade. Sei que não é possível fugir dessa dor, desse desconforto e que viver o luto na sua plenitude traz outros significados para a vida, como reconhecer em mim o legado da minha mãe. E também muitas lições, como não perder mais tempo com coisas que não importam tanto assim e buscar alegria nas pequenas coisas, como minha mãe sempre fez.

Li recentemente no site “Vamos falar de luto” uma frase que me marcou muito: “perder a mãe é como perder o chão, o teto e as paredes. Mas sempre será possível reconstruir essa casa com vigas e pilares mais resistentes”.

O amor da família e dos amigos têm sido o meu combustível, a minha argamassa nessa reconstrução. É com ele que eu conto para seguir os meus dias sem ela.

*Publicado na edição de terça-feira (19/07) do jornal Folha de S.Paulo