Uma xícara de chá é um bom começo pra essa prosa. Num memorável “dia de amigas”, nossa animada dupla foi a uma bela exposição de pintura modernista latino-americana, caminhou pelo centro da metrópole com olhos e ouvidos atentos às pulsações e estímulos, almoçou delícias irrigadas com espumante e arrematou a comilança com chá digestivo vermelho intenso, que ainda inspirou uma foto. Falamos de muitas coisas, política, carreiras, homens, amores, filhos, viagens, personalidades do momento, ex-marido recém-falecido, compramos um bicho de tecido para o neto em gestação e pérolas de resina para os colares que ela faz. Duas mulheres maduras, autônomas, apreciando a companhia mútua e as boas coisas que conquistamos.
Retrocedo oitenta anos e encontro o filme que vi há pouco, “Aconteceu naquela noite”, do celebrado diretor Frank Capra, lançado em 1934. Ellen é a jovem filha mimada de um magnata americano, e juntos, pai e filha, estão a bordo de um cruzeiro na Florida. A moça, muito contrariada porque o pai impediu-a de se casar com quem ela havia escolhido, consegue por um instante burlar o controle paterno e se joga no mar. Nada até a praia e inicia uma longa viagem por terra até Nova York, ao encontro do namorado. Embarca sozinha num ônibus, e dali pra frente o que se vê é uma longa sequência do que hoje identificamos como clichês machistas. A moça é voluntariosa, mas ingênua e carente, o galã que ela conhece no ônibus imediatamente assume uma atitude protetora e paternal, outro passageiro a assedia despudoradamente, o pai controla tudo de longe, e entre os homens a vida de Ellen é decidida.
Assim se passou com minhas avós, contemporâneas de Ellen, que estiveram sempre submetidas ao controle social, religioso, familiar e conjugal. E assim ainda vive um número indecente de mulheres.
No Brasil da década de 1930, escassas eram as geladeiras domésticas, a televisão inexistia, cozinhava-se em fogões a lenha, telefones eram coisas de milionários, a energia elétrica mal havia chegado às casas. Ainda se viajava de maria-fumaça, avião era quase uma miragem, as radionovelas ocupavam lugar de destaque no cotidiano familiar. Para quem acha que “antigamente era tudo melhor”, sugiro assuntar esses filmes antigos, hoje tão acessíveis, e ter uma ideia mais clara de como era de fato. E, na boa mesmo, essa nostalgia fica muito no terreno da conversa fiada, pois ninguém de fato deseja voltar a viver daquela maneira.
Exceto numa área: sim, muitos – e muitas – querem voltar no tempo e devolver as mulheres ao lugar de belas, recatadas e do lar. (Gostariam de “recolocar” negros e negras também, mas este é um outro assunto.) Querem fingir que o tempo não passou, que os computadores e a internet não aconteceram, que os aviões não se tornaram acessíveis, que já não é preciso comprar lenha para cozinhar? Não, ninguém quer isto. Só voltariam no tempo se fosse possível reassumir o controle total sobre a vida das mulheres. Como sabem que não é, ficam nesse frenesi patético de continuar nos tratando como nulidades tontas, de tentar demonstrar como tudo seria melhor, como todos seriam mais felizes se voltássemos ao “nosso lugar”.
Pois não vai acontecer. Nada vai voltar a ser como antes. Nem os fogões, nem as viagens, nem as comunicações, e muito menos as mulheres.
*Júnia Puglia foi Coordenadora de Programas da ONU Mulheres para o Brasil e o Cone Sul, e que atualmente sou cronista e editora da página De Um Tudo no Facebook.