Opinião

“A Mulher Negra. Uma nova abordagem contra o preconceito”, por Alexandra Marques Bandeira

Acervo pessoal de Alexandra Marques
Acervo pessoal de Alexandra Marques

Acervo pessoal de Alexandra Marques

Quando fui convidada para escrever um artigo sobre a “mulher negra”, imediatamente me questionei: por que eu? Sou mulher, mas não sou negra. Posso, imaginei, escrever sobre a mulher, mas como escrever sobre a mulher negra? O que sei eu sobre o sofrimento de ser um negro no Brasil?

Fiquei por três dias pensando. Para falar sobre preconceito e discriminação, é necessário que se tenha vivido, na carne, a dor deste mal? Proponho que não. Esta não é uma questão que interessa somente a mulheres e negros e mais precisamente, a mulheres negras. Deve envolver a todos, de qualquer raça, etnia, homens, mulheres, crianças. É de interesse público, assim como a economia, a segurança, a educação.

Muitas abordagens poderiam ser feitas, com números, com exemplos de vida, com exemplos de discriminação e de superação. Todas interessantes. Mas, como tentar chamar a atenção de todos? Sim, porque fazer com que todos parem para pensar sobre o tema já é um grande começo. Se eu conseguir que você leia até o final um texto sobre a “mulher negra”, já teremos dado um passo. Muito melhor seria que você não soubesse quem escreve. Se é branco, negro, índio, mulato, homem, mulher. Afinal, vamos falar de preconceito e ao saber que sou mulher e sou branca, corro o risco de ser interpretada deste ou daquele modo em razão disso, o que convenhamos, já seria uma forma de preconceito. Sendo assim, convido a todos que, pelo menos por alguns minutos esqueçam quem sou ou quem pareço ser. Desafio você leitor, a se livrar, só por alguns minutos, de todas as pré-concepções, pré-julgamentos, pré-conceitos. A partir de agora, proponho, não somos mais homens, mulheres, negros, amarelos ou mulatos. Prontos?

Pois bem. Se o tema é a “mulher negra”, parece-nos que teremos que tratar de preconceito e discriminação, dois termos bastante distintos, embora intimamente relacionados. Preconceito não pressupõe o ato de tratar diferentemente uma pessoa. Pode limitar-se a uma estrutura mental. Já a discriminação, em geral, fruto do preconceito, é a exteriorização deste, dirigida a um indivíduo ou grupo, é a concretização do preconceito e que leva, não raro, a tratamento claramente diferenciado em razão desta pessoa ou grupo ter esta ou aquela característica. Para Norberto Bobbio, em A Era dos Direitos, o preconceito pode limitar-se ao campo da ética, sendo uma opinião que é aceita passivamente, sem passar pelo crivo do raciocínio, da razão. Parte de uma generalização superficial, um estereótipo. Por isso mesmo, por não ser racionalizado, tão difícil é livrar-nos do preconceito. Para Bobbio, contudo, o preconceito torna-se efetivamente perigoso quando um grupo apresenta um juízo de valor negativo sobre outro grupo social. É precisamente esta diferenciação valorativa que embasa a discriminação, a exploração, a diferenciação ou simplesmente a segregação de um grupo por outro. A discriminação atinge o campo legal. No Brasil, viola a Constituição Federal, principalmente o seu artigo 5º que trata dos direitos e garantias fundamentais.

Feitas tais considerações iniciais, atemo-nos, pois, ao cerne do tema, ou seja, a questão da “mulher negra”. Neste caso, trataremos de um duplo preconceito, pois a mulher negra sofre discriminação em razão do seu gênero e de sua cor de pele. Falaremos deste problema, portanto, mas tentaremos, neste texto, fugir dos números, das estatísticas e de repetir o quanto é difícil, no Brasil, ser uma “mulher negra”. Tais abordagens vêm sendo exaustivamente apresentadas e debatidas. Discutem-se as causas da mulher ser oprimida e se atribui ao fato dos homens terem sempre dominado o poder e terem criado, para seu proveito, um sistema patriarcal, deixando-se antever, muitas vezes, que não interessa aos homens mudar “o estado das coisas”. Debate-se a questão do negro ter sido historicamente escravizado pelo “homem branco e opressor” e que mesmo depois de liberto, sempre ter sido marginalizado. Todas estas discussões e abordagens, sem dúvida, são válidas.

Existe uma incontável quantidade de grupos de defesa dos negros, defesa das mulheres. Não se pode negar a importância da existência de tais associações/entidades, que dão voz aos grupos discriminados e maior visibilidade à questão do preconceito. Contudo, em geral, o que temos são negros lutando contra o preconceito racial, mulheres se organizando contra a discriminação e violência de que são vítimas. Não raro, apesar de todo esforço e legitimidade da causa, acabam por “falar para si mesmos”. Em geral, em um seminário ou reunião de grupos em defesa das mulheres o que temos? Uma platéia, quase em sua totalidade, feminina. O mesmo ocorre com os negros. Esse isolamento em quase “guetos” restringe o alcance e a troca de ideias.

Em outubro de 2013, a atriz britânica Emma Watson, jovem e bela (o que já é motivo para preconceito), foi eleita Embaixadora da Boa Vontade da ONU Mulheres. Sua grande penetração entre o público jovem, em razão de ter protagonizado a musa da saga Harry Poter, ao que parece, justificou a escolha. No seu discurso de posse, lançou a
campanha HeForShe, em português, ElesPorElas. Bastou para ser alvo de muitas críticas, tanto homens que a acusavam de feminista e sexista, quanto de feministas, que afirmavam que a campanha colocava a mulher em uma posição de fragilidade, como criatura que sempre precisaria do homem como seu salvador. Contudo, as palavras de Emma foram proferidas no sentido da necessidade de trazer os homens para dentro da luta contra o preconceito, discriminação e violência contra as mulheres.
A mesma proposta pode ser aplicada à luta contra o preconceito de raça, que não interessa só aos negros. A luta contra a discriminação de raça, de gênero ou de qualquer outro tipo, não é um problema apenas dos grupos atingidos. É uma questão que a todos interessa. Eu, negro, não quero que meu filho sofra discriminação racial. Eu homem, não quero que minha filha sofra por ser mulher. Eu branco, negro, amarelo, não quero que o meu filho se torne uma pessoa que discrimine os outros. Para isso, eu tenho que mudar o meu modo de ver o mundo, os meus atos. Quando o preconceito e a discriminação acabam, quando mulheres brancas, mulheres negras, homens brancos e homens negros (isso só para limitar ao nosso tema), sem distinção, tem, de fato, todos os direitos assegurados, toda a humanidade é beneficiada.
*Alexandra Marques Bandeira é advogada, professora universitária, mestre em Direito, especialista em História Contemporânea e Relações Internacionais.