Opinião

“Política, Mulheres e Filosofia”, de Márcia Tiburi

Foto: Corbis
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Esquecer as mulheres

Quero oferecer um resumo de um histórico esquecimento. O que envolve a quase total, e que se diga, a substantiva ausência das mulheres da história do pensamento. Não é possível pensá-la sem antes questionar a função política do esquecimento. Não sem prestar atenção ao fato de que diante do esquecimento a possibilidade da história é relativa e que, a política, neste caso posto como urdidura da história, obriga a uma revisão da invenção do homem diante do que lhe escapa.  .

Em primeiro lugar é preciso saber que o esquecimento tem como função nos proteger. É algo mais que saudável, é o verdadeiro antídoto contra o ressentimento.   Friedrich Nietzsche louvou sua pertinência diante do ressentimento como impossibilidade de esquecer, fato que danificava nossa relação com a vida, por evitar o prazer e a alegria que lhe são próprios. O esquecimento era um mecanismo vital que impedia o eterno lembrar e relembrar no qual o passado era o eixo de uma paranoia. Ressentir é lembrar sem outro propósito do que sofrer. Só o esquecimento romperia a engrenagem paranoica em que o passado seria a medida de todo o tempo e nos massacraria sob um impiedoso peso. E Nietzsche tinha razão: é preciso esquecer para livrar-se do passado se o que ele oferece ao presente é dor e nada. Ressentimento é o nome do sofrimento que vem com o peso do tempo.  Esquecer, diante disto, é curar.  .

Apenas, não esqueçamos, não é curado o esquecido. Por isso, falei em histórico esquecimento, ou seja, o esquecimento que deixa suas marcas, feridas sempre pulsantes, na medida do tempo que é a história. Como ele se produz?

Além da função redentora do esquecimento, como queria Nietzsche, há que se analisar a função de poder que toma o esquecimento como dispositivo. Se esquecer é um poder, tornar esquecido é dominação. A história das mulheres dela deriva.

É preciso lembrar para construir a história, tal é o básico lugar comum a que temos que ceder. A história como memória é uma luta contra a morte do passado. E o esquecimento longe de ser algo desejável é o seu algoz. Por outro lado, a história não é a simples antítese do esquecimento, outro fato que somos obrigados a pensar se nosso processo tem consideração à dialética. A história é, ela mesma, esquecimento, ou seja, o que é lembrado só pode ser lembrado porque algo foi esquecido. Não há como lembrar ou preservar a lembrança do que não se esqueceu ou não esteve prestes a ser esquecido. O que se grava em nossa memória o foi por algum reforço de substâncias somáticas lançadas no organismo em função de um estímulo fortíssimo provocado por um evento externo que nos obriga a gravar o fato. Além disso, há o trauma que nos faz esquecer o que seria para sempre lembrado devido ao grau do choque nele vivido. O trauma mostra que o recalque é parte essencial da memória. Uma implosão da memória que tudo invade e, tornando-se totalidade, impede a evolução de outras formas, de um novo que lhe negue. O trauma torna-se para quem o vive, sempre inconscientemente, uma medida de todas as coisas. O recalque, mecanismo do trauma, é só o que faz sobreviver ao trauma. Compõe sua constituição, não há como livrar-se de seu mecanismo, pois não controlamos o que podemos lembrar.

É preciso um grande esforço para organizar nossos níveis de memória. É o que faz a história. O que se revela na linha do tempo sempre é aparição de algo outro que não se pode ver ou que, noutra medida, apareceu enquanto não apareceu. O que foi esquecido torna-se a medida do que pode ser lembrado. O oculto está sempre à mostra. Para atingi-lo, o saber que nele se guarda, é preciso reler e prestar atenção à superfície, pois não temos uma boa percepção, não somos bons leitores das linhas do tempo. Ou seja, a cada vez que elegemos um fato que deverá figurar na cena histórica, algo que possa ser contado e transmitido, deixamos outro aspecto de fora. Todo positivo envolve um negativo. A história é como a fotografia.

Se a questão são as mulheres na história podemos recorrer a Georges Duby e Michele Perro, autores dos cinco impressionantes volumes da História das mulheres, que já questionaram esta possibilidade: teriam elas uma história? Por que não? A pergunta já guarda sua resposta como uma segunda camada de perguntas: por onde construir uma memória para estas figuras, ícones do esquecimento, que provam com sua existência a impossibilidade da história? Se pensarmos na dialética desta pergunta incrementamos nosso pensamento: há que se desocultar as tramas internas de uma história que não foi bem contada. E outra pergunta se impõe: por que as mulheres ficaram de fora? Teria sido o esquecimento das mulheres alguma espécie de projeção dos homens sobre o poder que lhe seria próprio? A história das mulheres como algo extra-histórico revelaria a história verdadeira dos homens? Qual a verdade que mora nesta ausência de poder das mulheres? A do poder dos homens? Que poder é esse? A história dos homens e a história das mulheres é uma questão de poder. Mas apenas isso? A história do pensamento envolve o que não foi pensado e o impensável. A história das mulheres na filosofia é a medida da história do pensamento dos homens que conhecemos. O que seria um pensamento das mulheres neste caso? Seria esta a questão a colocar hoje?

Pensar: um verbo patriarcal

Hoje, ainda cabe colocar a pergunta pelo lugar das mulheres na filosofia não porque as mulheres sejam vítimas dos homens. Não se trata de contabilidade nem de justiça, ainda que isso possa, e mesmo deva, ser buscado. A revolução feminista já rendeu seus frutos em muitos tempos e espaços, embora ainda possa e deva avançar. Além da questão política há uma carga metafísica que dela advém, e que, infelizmente, jamais é levada em conta. Ela precisa ser pesada na compreensão da estrutura do poder. A tese a ser pensada é de que o poder patriarcal não é apenas um dado histórico, mas um dado arcaico que modela nossa realidade. Como que um fundamento que instaurado em nossa base.  .

O poder patriarcal seria uma espécie de ideia reguladora a definir o sentido mesmo do poder aliado à racionalidade se já não fosse método que liga nosso pensamento ao que pode ser conhecido e que, mais além, define o que pensamos da nossa habilidade em conhecer. Sendo método no sentido primeiro deste termo, todo o nosso modo de ver a realidade depende dele. Sabemos, ao falar de filosofia, que método é modo de pensar, é caminho para conhecer. Sabemos que a própria linguagem estrutura-se, ela mesma, como método. Dela dependemos para trilhar o caminho. Todas as filosofias que lidaram com a noção de identidade (de Parmênides à adaequatio rei et intelectus, do cogito cartesiano à linguagem que não pode dizer o que está além dela de Wittgenstein) são a prova disso, do império de um mais forte, o sujeito, sobre um mais fraco, o objeto. Da possibilidade que o pensamento traduz de dizer o que há e definir um mundo. O patriarcado da razão significa que todo o nosso modo de pensar/ falar-o-que-pensamos depende do patriarcado e não apenas da racionalidade, esta já está submetida a ele por essência e configuração.

O patriarcado da razão é também o patriarcado racional. Ele define mais do que o momento sexual da racionalidade, a sua própria simbólica: trata do momento em que o pai, o representante histórico – e agora simbólico – da lei (religiosa e familiar, profana e pública), impera sobre tudo o mais que existe. Trata-se, portanto, de uma postura da racionalidade derivada da outorga de um direito de imperar sobre outrem baseado na especialidade racional de uma natureza, conforme nos contam os mitos. A diferença entre homens e animais – entre o homem e a natureza que ele pode subjugar – define a mesma diferença que há entre homens e mulheres. Portanto, quando falamos de mulheres pomos em questão a relação do homem (e do humano que é resultado de uma determinada compreensão do homem) com a natureza, com aquilo que o transcende. Ainda que muito cara e essencial, a questão das mulheres é apenas a ponta do iceberg de uma verdadeira tragédia ínsita à história, a que diz respeito à destruição da natureza. História esta que precisa ser levada em conta na definição do humano. É bem verdade que o status da mulher na modernidade científica colocava-a abaixo da natureza. A natureza ainda interessava ao homem como algo que poderia lhe oferecer vantagens, saberes e poderes; a mulher simplesmente existia com a única função de procriar e manter-se calada diante da lei. Este sempre foi o maior significado do patriarcado. A natureza ainda podia ser desvendada, ainda cabia buscar conhecer seus mistérios. O mistério da mulher devia ser calado. O lugar da mulher era o mesmo que o dos animais domésticos: habitante de um limiar entre natureza e cultura a viver no espaço específico de um campo de concentração a que se chamou lar.

Que motivação teria levado a uma subjugação das mulheres pelos homens? O medo que os homens tinham das mulheres? Do que elas representavam em sua proximidade com a natureza? O potencial das mulheres para a vida pública e a vida intelectual teria sido recalcado como estratégia de dominação? Medo de que a mulher elevasse sua fala a uma verdadeira voz que se fizesse ouvir? A lei dos homens sobre as mulheres e os animais e toda a natureza sempre funcionou como força e violência. O estado atual da experiência humana deriva desta instauração ancestral. A questão que não pode ser esquecida é a de que ao supor a divisão dos sexos como justificativa na determinação do poder e da política como espaço de sua realização é preciso ainda perguntar pelos motivos desta divisão. Por trás das diferenças sexuais e de gênero está um limiar, uma espécie de ponto de partida, como que um princípio de todas as coisas que eleva a questão da política a um problema de ordem também metafísica. Sem a fundamentação metafísica não haveria um suporte tão radical da política.

Como libertar o pensamento do patriarcado? Seria possível liberar o pensamento do chão onde ele mesmo nasceu?

O coveiro de Hamlet, ou Ofélia e o novo historiador.

Toda história carrega uma política tanto quanto a política está inscrita na história sustentando uma linha do tempo. A história, no seu sentido mais comum, é um sistema oficialmente antidemocrático que opera no tempo elegendo os fatos para compô-lo. Ela é recorte e interpretação e, como tal, é limitadora e limitada. Sua intenção de contar o que é mais importante, o que tem relevância dentro da multiplicidade dos fatos da vida, deixa mundos inteiros de lado, esquecidos em função de sua ordem necessária e imposta. Ao que sobra fora, ao que fica aquém ou além, por força de imposição, para além da negligência, damos o nome de recalcado. O recalcado é algo mais que esquecido, algo que precisou ficar de fora numa determinada escultura do tempo. O resto e a sobra é o que cabe avaliar.

Por outro lado, se a história é composta de recalque, sabemos desde a psicanálise que todo recalque retorna – a chamado (a fórceps) ou espontaneamente como impulso sem contensão – e se mostra como sintoma. O sintoma é a linguagem como tempestade, como arrombamento. É o assalto do impulso que, armado de uma violência que vem do tempo, não pode mais ser contido. Forças externas e internas o expulsam e magnetizam. O recalcado depende deste jogo para surgir. O historiador, nesta hora, deve tornar-se o acionador do dispositivo que arrasta as forças e escava o tempo.

A história que se faz escavando o recalcado, ou seja, enfrentando a função duplamente redentora e danadora do esquecimento, é a história que assume mostrar seus cadáveres, qual o coveiro de Hamlet, príncipe confuso que dá nome à peça de Shakespeare, que ao abrir uma nova cova lança as caveiras soterradas para fora da terra. A história não para. Toda ação guarda em si o seu resultado: o coveiro reabre a cova para dar lugar a um novo morto.

A famosa cena em que Hamlet conversa com o coveiro é uma alegoria da história. Não a cito aqui sem uma específica intenção. O novo morto para o qual uma sepultura é aberta é Ofélia que se suicida pela rejeição do príncipe que num primeiro momento sugeriu amá-la e, ainda que por loucura, traiu a promessa feita à moça. Enganou-a humilhando-a e perturbando sua própria consciência. Amava-a, mas não podia reconhecê-la? Ou não a amava, mas sabia que deveria amá-la e isso o atormentava?

Curiosamente a peça shakespeariana também oferece uma alegoria das relações entre homens e mulheres. É certo que o personagem do príncipe representava um louco, um indivíduo inimputável por sua condição mental, mas seria só isso? Não se diz na peça que ele está louco, mas que sofre. Sua loucura é o que podemos depreender, nós que vemos ou lemos a peça, não o fato de sua vida. Hamlet era também o astuto, o vingativo, o homem cheio de ódio, o príncipe autor que inventa a peça de teatro a ocorrer dentro da peça de teatro (jogo de espelhos barroco em que a vida está dentro da arte e a arte dentro da vida). Ofélia é a dama que, num suicídio famoso por afogamento, entrega a sua vida ao nada, cuja alternativa seria outro nada, o azar de casar-se com um homem transtornado pelos próprios sentimentos e de pensamentos perturbadíssimos.

O que faria o príncipe “odiar” aquela que, num primeiro momento (em sua primeira conversa com ela) e num último (em seu lamento sobre o cadáver), aparecia como sua provável amada? Estamos na peça diante de uma intensa contradição ou da mais reta das verdades? Qual a motivação para não apenas não desejar o amor de quem ele dizia e demonstrava amar e que o amava, mas rejeitá-lo, aviltá-lo, como o fez e, depois, desejá-lo novamente quando a realização deste desejo é impossível pela morte? Mulher rejeitada, suposta amada firmemente aviltada, amor na morte, o que mais seria Ofélia?

Ofélia é mais que uma rejeição ao amor, ao sentimento e aos afetos, ela é uma rejeição ao saber e a opção pela ignorância. Ofélia é a interrupção de Eros, espécie de amor que se faz desejo e desejo de desejo, desejo do além do visto e já sabido, aspecto básico do conhecimento. O ir adiante ínsito a Eros, o contemplar o que está além do corpo, máxima do saber, é o que é impossível a Hamlet. Ao rejeitar Ofélia, Hamlet rejeita a alegria de Eros, a possibilidade de uma vida vivida em outro paradigma que o da melancolia que o atingiu. Rejeitar Ofélia é deixar de sonhar com outro mundo possível e aceitar o dogma de um saber  que é sempre não-saber, o dogma de uma resposta já pronta.

A relação de Hamlet com Ofélia é a mesma que os filósofos tiveram com as mulheres na história da filosofia: uma história de rejeição e escárnio e posterior desejo. Hamlet mostra a relação moderna comEros, com o que podemos saber. Saber é poder, lei que resume a relação entre filosofia e política, deve ser pensada neste âmbito. Rejeitar as mulheres é um gesto político que tem em sua base um gesto epistemológico. O filósofo melancólico, marca do pensador moderno, é aquele que rejeita o mundo objetivo a ser conhecido, justamente porque descobre que ele não pode se conhecido. O mistério é o buraco negro a ser abandonado à medida que não pode ser desvendado. Rejeita-se o amor como se rejeita o saber.

O filósofo moderno rejeita o que ele não pode conhecer e opta por conhecer o próprio conhecimento, tal como no gesto típico de Kant, para quem a verdadeira e mais radical das promessas do Iluminismo no século XVIII é conhecer a faculdade da razão. Rejeitar as mulheres é a metáfora – e a metonímia – da rejeição de todo o saber sobre o mundo, uma rejeição da metafísica em favor da teoria do conhecimento como vemos em Kant. Ela significa que, em última instância, não posso confiar no outro – o que significa entregar-me a ele, para usar uma expressão corrente no discurso feminino -, mas apenas confiar no que penso dele. No que depende de mim. Uma rejeição da objetividade, no que ela tem de assustadora, em favor da subjetividade autossustentada. O que tal postura não costuma revelar a si mesma é que, diante do mistério há apenas a chance de buscar a verdade como sua desocultação ou a paranoia como sustentação de uma visão pronta sobre ela.

A traição de Eros

As mulheres aparecem aqui como aliadas de Eros. Porém, sob o domínio dos homens foram a eles subjugadas pelo amor prometido abandonadas a um espaço onde viveram a existência como mortas-vivas (vide a história das musas mortas dos românticos europeus e brasileiros, das belas adormecidas dos contos de fadas, alegorias indeléveis do amor que merecem as que, mortas, são mudas tanto quanto ideais).  Viveram a história de um Eros traidor. Hoje, todo aquele que se ocupar da história das mulheres na filosofia estará do lado da Ofélia morta e, com o coveiro a retirar os ossos dos defuntos anteriores (Ofélias abandonadas) preparará uma nova sepultura para a morta-viva. Que seu corpo e sua alma descansem em paz.

O Eros traidor é o Eros que chama Diotima no Banquete como representante de um ideal, aquele que fala pela boca de Sócrates, ancestral do que Goethe no século XVIII louvou como o eterno feminino. Trata-se do “amor-ódio” que domina a história da filosofia colocando a razão como uma arma contra as mulheres, a imaginação, a natureza, a sensibilidade. O amor-ódio é o nome verdadeiro da racionalidade que decidiu abandonar sua própria limitação e que erigiu tal abandono ao seu maior  trunfo na antiguidade e que na era moderna elevou a limitação como máscara de um poder sem limites.

Saber é Poder (e as mulheres?)

Se a história é hoje, após o advento da nova história, capaz de revirar os restos do passado e reavaliá-lo em suas verdades internas, assim é também a história da filosofia, na qual a compilação dos restos é ainda mais complicada. Se na história humana podemos contar com documentos oriundos do plano jurídico, religioso, da descrição dos costumes pela literatura e pela documentação em geral, na história da filosofia se trabalha com ideias estreitamente atreladas a um tipo de documento muito específico, a uma forma de escritura que se esqueceu de si, que se fez texto como que indiferente ao fato de que seja texto. As ideias sempre se sobrepuseram ao elemento escrito e, por isso, é como se a filosofia não trabalhasse com documentos, como se estivesse para além dos autos. Se pensássemos a história da filosofia como um território de documentos sobre pensamentos, ou de literatura sobre pensamentos, tudo seria diferente. Hoje não teríamos as questões que temos para responder no que se refere à participação das mulheres na produção da filosofia. Se os documentos filosóficos fossem lidos como testemunhos de um tempo, como devem ser os documentos, saberíamos que eles revelam um tempo (não uma eternidade, nem um universal), mais do que uma necessidade da capacidade masculina de filosofar da qual as mulheres não participaram em função de sua sempre defendida incompetência natural. Os textos filosóficos pretenderam ser provas documentais da incapacidade feminina para o pensamento. Podemos hoje analisar a hipótese avessa, eles são a prova da proibição do pensar. Esta proibição antiga, por sua vez, se faz ver em toda a história das ditaduras, sejam aristocráticas, burguesas ou populares. Se hoje ao povo é proibido pensar, estudar, ter acesso à informação, não devemos imaginar que em outros tempos tais direitos de elite fossem assegurados a quem estivesse delas excluído.

A história da filosofia foi uma história de poder. Quando Francis Bacon no século XVII concluiu a famosa frase “saber é poder” todos os filósofos, se não sabiam, já haviam experimentado a identidade dos termos. Até hoje a filosofia, aceita sempre como questão de saber, precisa ser revista como uma questão de poder que inclua a diferença entre os sexos. Nela estão em jogo os ideais que definem os rumos da humanidade.

Quando a filosofia iniciou na Grécia Clássica ela era, como continuou sendo ao longo de mais de 20 séculos, uma questão de homens. Apenas os homens podiam dela participar como mostram os textos mais decisivos da filosofia antiga, tais como os diálogos platônicos e os tratados de Aristóteles. O Banquete de Platão mostra as flautistas sendo retiradas do recinto onde iniciarão as conversas entre os homens a que chamavam filosofia. A Política de Aristóteles deixa claro que o corpo da mulher é um corpo que pertence, junto ao corpo do escravo, ao corpo do homem; este o único hábil para as ações livres como a luta na guerra, a democracia na Ágora.

Que seja uma questão de homens podemos entender pela avaliação dos aspectos patriarcais de nossa civilização e cultura. A filosofia é um produto de homens e para os homens. Tudo parece muito explicado e daí bastaria fazermos a crítica da filosofia como crítica da cultura. Mas como a filosofia tem a incumbência ética de ser pensamento crítico e esclarecedor – pois, qual seria a função do logos desde os seus primórdios senão o de destituir o mito? – sua crítica não pode deixar de levar em conta o papel que desempenhou na produção do mesmo patriarcado, por confirmá-lo ao não destituí-lo de seu lugar falso.  Se a filosofia deixa de ser crítica ela passa a ser confirmação e contradiz a si mesma ao contradizer o Logos com o qual ela se instaurou como poder de livrar os seres humanos (na Grécia antiga eram apenas os homens) das respostas falsas e libertá-los da ignorância.

Não se trata, neste ponto, de culpabilizar a filosofia por uma promessa não cumprida, pois a filosofia sempre esteve na mão dos filósofos e estes eram homens. Trata-se  de rever a potencialidade da razão na emancipação do humano, e, hoje, na emancipação da natureza. É justamente o caminho da razão que se deve questionar àqueles que a possuíam e definiam seus destinos.

Inventar as mulheres

Dizer que as mulheres não existiram na história da filosofia é um veredicto um tanto trágico. A verdade tem muitas vezes um tom trágico, quando ela diz respeito ao que não pode ser recuperado do passado. Houve, é claro, mulheres escrevendo cartas, debatendo com os filósofos, e até, com raras exceções, sendo debatidas por eles. As mulheres que não participaram da filosofia, fantasmas sempre chamadas à cena pela própria pergunta, são criações da mente que não cansa de questionar. No século XX, com o avanço do feminismo, cresceu também a relação entre mulheres e filosofia. Autorizadas ao trabalho, à linguagem e à voz, as mulheres entraram na esfera pública. A relação entre mulheres e filosofia que cabe avaliar faz perceber o novo advento político que envolve hoje o saber.

Por que as mulheres foram tema dos filósofos? Por que não escreveram filosofia? Por que foram consideradas incapazes do mesmo pensamento de que os homens eram capazes? O mesmo que tratá-las como mortas. E, por mais exagerado que isso possa ser como metáfora. Dizer que elas escreveram e participaram em alguma medida dos circuitos onde se elaborava a filosofia, simplesmente não é uma resposta razoável. Dá às mulheres uma posição subalterna que não evidencia os elementos políticos a partir dos quais podemos saber que sua participação no saber foi inviabilizada. É melhor dizer: proibida.   Se questionar sua história em geral é possível, tanto mais na história do pensamento. Da passividade, objetos do olhar, objetos do prazer, objetos do amor, objetos simplesmente como Ofélia que se mata após o louco esquecimento de Hamlet. Se suicida pela falta de reconhecimento do homem que julga amar. Na história como tal, e na história da filosofia em particular, o que pode a mulher é menos que o que pode o corpo, se enveredamos na surpreendente questão spinoziana.

A mulher historicamente não passa de um corpo apto ou não ao parto. Um corpo que, animalizado como na zoe aristotélica, é mera vida. Não mais que corpo que respira, come, excreta, que faz nascer outros corpos como se fosse máquina de parir. O corpo dos homens é, para Aristóteles (e notem que estas questões aparecem em sua Política), o corpo qualificado pela vida da linguagem, é bios, por oposição a zoe, é corpo capaz de lutar pela liberdade no avesso do corpo que meramente sobrevive. Há querer neste corpo por oposição a um corpo que é objeto e pode ser movido por outro, pertencer-lhe como propriedade. Esta, todavia, não é uma das maiores injustiças que os filósofos homens fizeram às mulheres em nome da filosofia, mas uma das maiores provas da incompetência analítica, além de cinismo das leituras masculinas. O parto é, em filosofia, uma grande e originária questão epistemológica e metafísica, é mais que uma metáfora de instauração, é nome próprio de um aspecto do método socrático que valeu como caminho e lugar da verdade buscada na filosofia. O que a filosofia obriga agora é a uma revisão profunda da maiêutica daquele mestre filósofo, homem, invejoso do parto de sua mãe e, como tal,  traidor de Eros.

O que se chama mulher é um ser encarcerado em uma corporeidade construída sob a ideia de um necessário cativeiro. Esta é a função social derivada de uma função natural da qual ela jamais se liberta ao longo dos séculos. É pelo parto que ela conhece seu lugar social e seu esquecimento histórico. Sua medida é o parto, a capacidade de parir. É por ser construída como corpo – um corpo mais que corpo, um corpo demasiado corpo – que a mulher é alienada de sua capacidade espiritual até que alguém questione o sentido e o poder como controle que está dado nessa divisão das esferas, uma divisão do trabalho.

É impossível hoje pensar a história da filosofia sem uma avaliação do que a pressupõe. Por isso, essa introdução é necessária à medida que a história das mulheres na filosofia oferece um questionamento sobre a história da filosofia como um todo. O que está em jogo é o fio que estabelece um trajeto e um cânone e o sentido do pensamento atado a um cânone. Lembrar as mulheres na filosofia é o gesto que tem o teor de uma irrupção. Novo parto.

* Originalmente publicado em Educação e Sociedade: Perspectivas Educacionais no século XXI. Organizadoras: Rita Gonçalves, Lia Viero, Elisabeth Medeiros, Maria Joanete Silveira. Santa Maria: Unifra, 2006.