Opinião

“A geometria de Dilma é pré-euclidiana”, por José Serra

Foto: George Gianni

Foto: George Gianni

Grande erro da natureza é a incompetência não doer  

(Millor Fernandes)

“A menor distância entre dois pontos é uma linha reta? Euclides de Alexandria, 300 anos antes de Cristo, demonstrou que sim. Mas o grande problema do Brasil atual é que o governo Dilma é pré-euclideano, ou seja, nas suas concepções, estratégias e ações a menor distância entre dois pontos não é uma linha reta, mas uma curva espiralada e tridimensional. Por isso mesmo, tudo o que pretende fazer de bom ou ruim custa muito mais tempo e recursos. Perde-se no caminho das espirais e, com frequência, não chega ao ponto almejado.”

Tenho recorrido a essa alegoria em palestras feitas desde 2011. É claro que, no governo Lula — e em geral o PT em suas administrações —, também houve repúdio a Euclides. Mas Dilma Roussef o levou ao paroxismo, por dois motivos. Primeiro: porque o quadro econômico é bem mais opaco e adverso. Lula faturou uma grande bonança externa decorrente da subida dos preços de nossas matérias primas exportadas e torrou o dinheiro em consumo importado, inclusive substituindo a produção industrial doméstica pela estrangeira. E ainda deixou a taxa de câmbio insustentavelmente supervalorizada, com toda a implicação inflacionária que isso teria no futuro. Em suma, comeu o filé e a alcatra, repartiu a carne de segunda e deixou apenas lascas e ossos para a sucessora que ele próprio elegeu.

Mas há um segundo fator que aperfeiçoou o ataque à geometria: a inexperiência da presidente na gestão de assuntos públicos, acompanhada, no entanto, de sua convicção íntima de que é uma excepcional gestora. Eis uma mistura explosiva para a qualidade da administração pública em qualquer lugar do mundo — pior, num regime presidencialista, especialmente o brasileiro.

Um belo exemplo dessa vocação anti-euclidiana é (ou foi) o trem-bala. É para melhorar o transporte terrestre de passageiros entre São Paulo e Rio? Comece-se investindo nos metrôs e trens urbanos dessas cidades, modernizando a linha de trem já existente entre elas, adicionando alguns trechos. Agora, se é para abandonar a linha reta e embarcar na espiral, deixem-se de lado os transportes dentro das cidades, implante-se um trem interestadual de altíssima velocidade, sem demanda que o justifique e a um custo de R$ 75 bilhões!

Dois outros exemplos, bastante feios por sinal, pois suas consequências adversas já se verificam, são os casos da Eletrobrás e da Petrobrás, empresas de energia que resultaram de batalhas históricas. A primeira delas, criada pelo governo João Goulart, em 1963, foi consolidada e fortalecida pelos governos militares, com seus ministros Roberto Campos, Otávio Bulhões, Delfim Netto, Reis Veloso e Mário Henrique Simonsen. Algum suspeito de esquerdista (ou de “nacional desenvolvimentista”)? Pois bem, o governo Dilma conseguiu, com muita determinação e, aí sim, talento, quebrá-la, desorganizando o sistema elétrico nacional. Com uma simples Medida Provisória, de setembro de 2012, cometeu um erro perfeito: aquele que é cometido de graça, bestamente, que é difícil de corrigir e tem efeitos desastrosos.

A Petrobrás, monopólio estatal de petróleo criado graças a um líder parlamentar (relator da lei 2004) da União Democrática Nacional, a UDN, considerada entreguista e golpista, e resultado de tantas lutas nacionalistas e estudantis, foi simplesmente quebrada e desmoralizada pelo PT nas gestões de Dilma Roussef no ministério de Minas e Energia, na Casa Civil e na Presidência da República.

Do ponto de vistas dos costumes, já se sabe bastante e vai se saber muito mais: trata-se, dados os custos e efeitos morais, do maior escândalo de corrupção e inépcia de nossa história de nação independente. Desses que nos causam vergonha íntima. Faz do Brasil pré-64 uma era de ingenuidade; do regime militar, um sucessor de Esparta; do governo Collor, um amador no ramo.

Do ponto de vista da estratégia da empresa, tem-se a incompetência suicida na construção de refinarias e a implantação do método da partilha no caso do petróleo do pré-sal. Havia um modelo de concessões que funcionava bem, mas foi deixado de lado em troca de outro que obriga a Petrobrás a pôr pelo menos 30% do dinheiro de cada novo campo explorado, recursos que ela não tem. Junto à compressão dos seus preços, isso elevou brutalmente suas dívidas e desvalorizou seu patrimônio.

Numa palestra em agosto de 2013 analisei as características do que chamei o estilo lulista de crescimento e sua fase de esgotamento. Mostrei a falta ou ineficácia de políticas que deveriam deter a desaceleração econômica e reabrir, nem que fosse a médio prazo, um ciclo de expansão sustentado. Enunciei as razões do pessimismo dos agentes econômicos em relação à economia, o qual tenderia a se aprofundar e representar ele mesmo um fator adverso para a recuperação, na base da profecia que se autorrealiza. Foi inevitável a pergunta leninista do público: “O que fazer?”

Respondi: “A presidente Dilma ir para a TV e anunciar: ‘Em 2014, não serei candidata à reeleição. A situação nacional exige que formemos um governo acima das paixões eleitorais, dedicado cem por cento à identificação e encaminhamento das soluções de cada um dos nossos principais problemas. É o que farei. Chamarei os melhores quadros do país para colaborar.’” Imagine-se o alívio geral.

Explico-me: não disse aquilo porque achasse factível Dilma assumir essa atitude de estadista. A ideia foi mostrar que a principal causa do pessimismo era, como é, a possibilidade de tê-la mais quatro anos à frente do governo. De lá para cá, essa ansiedade se espalhou de tal maneira que, hoje, atinge o próprio PT.

E que fique claro: a presidente da república é, pessoalmente, um fator agravante da crise, mas não é a crise ela mesma. Esta, de fato, é de modelo, é de paradigma. Lula fez algumas poucas escolhas certas em circunstâncias que não dependiam dele e fez outras muito erradas quando tinha alternativas. É contra a natureza achar que um político não vai pensar na sua popularidade. Mas um Homem de Estado precisa ir além do aplauso e da vaia — e já sabemos que ele não resiste à ovação. O país pagou o pato. Assistimos à gangrena de um modelo: vai apodrecendo, mas ainda está vivo.

Fonte: Estado de S.Paulo, edição de 10 de abril de 2014