Opinião

“Refrescando a memória com Carlos Drummond de Andrade”, por Lêda Tâmega

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Para quem não se lembra ou não viveu naquela época, aí vai um instantâneo, captado pela ironia de Drummond, da situação dramática envolvendo as telecomunicações no Brasil, antes da privatização da Telebrás, realizada pelo governo do PSDB sob o comando de Fernando Henrique Cardoso. (*)

TELEFONE

Carlos Drummond de Andrade

– O senhor é que é o senhor mesmo?

– Como?

– Estou perguntando quem é o senhor, afinal.

– Evaristo Pestana de Matos, seu criado.

– Isso estou vendo na carteira de identidade. Mas o talão de inscrição diz Abel Setembrino de Matos.

– É meu avô paterno.

– Então fala pra seu avô vir ele mesmo, trazendo a carteira.

– Isto eu não posso falar não senhor.

– Não pode por quê?

– Porque ele já é falecido desde 1952.

– Se já é falecido, nada feito. A inscrição está cancelada.

– Cancelada como, se ele foi chamado pela Companhia no jornal de hoje?

– Olha, moço, a Companhia chamou na suposição dele estar vivo. Não estando, fica sem efeito a chamada. Compreendeu?

– Compreendi não. A Companhia chamou, tá chamado. Eu vim em nome de meu saudoso avô pagar a primeira cota do telefone que ele pediu há 24 anos, quando eu era menino de colo, aliás afilhado dele.

– O senhor está é brincando. Seu avô não precisa mais de telefone.

-Mas preciso eu, que sou neto dele, será que o senhor também não mora? Este talão aqui foi conservado pela família durante um quarto de século. Meu avô, sentindo uma dor do lado esquerdo, chamou meu pai e disse: “Etelberto, tira da gavetinha do criado-mudo minha inscrição de telefone e guarda ela com cuidado. Não pude deixar um aparelho para você, mas deixo essa esperança. Não vende a inscrição por dinheiro nenhum, meu filho. Satisfaz minha última vontade.” Disse e morreu.

– É comovente, mas…

– Espera aí. Tem mais. Meu pai guardou o papel 13 anos e também embarcou, coitado. Na hora da despedida, me fez a mesma recomendação. Estou cumprindo um mandado de família, uma coisa sagrada para mim. Já lhe dei o talão. Me dá meu telefone, cidadão.

– Esse talão é de Abel Setembrino de Matos, ô homem!

– Eu sei. Meu avô, pai de meu pai. Me tocou como bem de família.

-Tocou como? Por acaso entrou em inventário, o senhor tem formal de partilha provando isso?

– Formal eu não tenho, mas tenho o talão. Quem mais senão eu podia ficar com o talão se sou filho único de filho único de meu avô?

– Eu sei lá se o senhor é único ou se faz parte de escadinha. Nem interessa à Companhia saber quem é filho único de quem. Sabe que mais? A conversa já esticou demais. Vou chamar o próximo.

– Me atenda antes, por favor. Não vai me obrigar a ir para a televisão reclamar o direito de meu avô, nem contratar advogado. Pois eu vou, eu contrato.

– Faça o que quiser.

– O que eu quero é o telefone de meu avô, pedido em 1943!

– Retire-se, o senhor está enchendo!

– Hein?!

– Está enchendo, já disse!

– Estou é me sentindo mal… Uma coisa do lado esquerdo… uma nuvem… uma vertigem… A gente esperando desde a Segunda Guerra Mundial, e na hora de receber o telefone, ah meu Deus, o Senhor me chama para o seu seio… Não faz isso comigo, deixa pelo menos eu tomar um táxi, ir em casa entregar a meu filho Tonico este talão… Quem sabe se ele um dia… Cai.

(*) A privatização da Telebrás ocorreu por meio de leilão em 29 de julho de 1998 na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, sendo a maior privatização ocorrida no Brasil, arrecadando R$ 22,058 bilhões pelos 20% das ações em poder do governo na época. (Fonte: Wikipédia)