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“Ruth Cardoso: Contemporânea”, por Celso Lafer e Regina Siqueira

* Artigo publicado na edição desta quarta-feira (10) do jornal Folha de S. Paulo

Ruth Cardoso Foto Divulgacao 1Os protestos que hoje acontecem nas ruas do Brasil, caracterizados pela falta de liderança política e apartidarismo, teriam uma sagaz observadora se Ruth Cardoso não tivesse partido há cinco anos.

Seu amigo Manuel Castells relata que, em 2002, num seminário internacional, Ruth soltara, numa discussão: “O povo desunido jamais será vencido” –à época uma heresia para alguns, mas não para o sociólogo, que ratificou a autora daquela frase profética como “simples, brilhante e profunda”, pois “é a multiplicidade de fontes de mudança social, sua não articulação em aparelhos políticos instrumentais que vai solapando as raízes da dominação”.

Ruth Cardoso era uma arguta socióloga, antropóloga e cientista política. O lançamento de “Obra Reunida”, em 2011, trouxe a público uma faceta sua pouco conhecida. Ela não havia produzido uma obra escrita extensa desde que se formara em 1952, pela USP. A araraquarense costumava reunir alunos, ex-alunos e colaboradores em debates que resultavam num trabalho intelectual conjunto. Vários textos tinham origem naqueles momentos.

Sua dimensão intelectual em mais de 50 anos de atividade acadêmica não se refletia nos seus artigos esparsos. Mas, reunidos, eles ganharam todo o sentido e mostraram a singularidade da pensadora, que logo percebeu a mudança na dinâmica dos movimentos da sociedade.

Coube à cientista política Teresa Caldeira a organização de “Obra Reunida” e uma apresentação que analisa magistralmente os escritos de Ruth como resultado de seu pensamento, claro, mas também como pressuposto de sua ação.

Ao citar Foucault (1984), Teresa expõe a contemporaneidade de Ruth, espelhada na busca de espaço para reflexão, questionamento e soluções. Diz ele: “Ser moderno é não aceitar a si mesmo como se é no fluxo dos momentos que passam; é tomar a si mesmo como objeto de uma elaboração complexa e difícil. É sentir-se compelido a se inventar”.

Ruth, por sua vez, afirma em entrevista no final de 2002 e do governo de seu marido: “Tive, literalmente, que começar a inventar um lugar e uma maneira de aproveitar, por um lado, as vantagens de estar próxima de um governo e, ao mesmo tempo, querer fazer alguma coisa. Então, esse foi o meu processo para inventar a Comunidade Solidária”.

A sua ação durante e depois do governo FHC foi produto de reflexão anterior acerca de seu tempo e de como ela poderia destacar e estimular, nesse seu tempo, o que tendia à inovação. As organizações que criou foram o espelho desse pensamento.

No prefácio a “O Poder da Identidade” (1999), livro de Castells, dizia ela: “A criatividade, a negociação e a capacidade de mobilização serão os mais importantes instrumentos para conquistar um lugar na sociedade em rede”. Outra vez, à frente de seu tempo!

As organizações concebidas por Ruth se guiaram e se guiam por sua concepção inovadora, no Brasil e no mundo. E o Centro Ruth Cardoso cuida para que sua memória e ação permaneçam, como quando do Festival de Ideias, concebido em 2011. O recém-lançado Festival Educação mobilizará alunos nas redes sociais para desafios e soluções criativas no ambiente escolar. A educação como o começo e o fim de tudo.