O que era o Portal do Alvorada. Apesar do nome, não se tratava de nenhuma plataforma digital. O Portal do Alvorada era uma unidade física, que servia de base operacional para o Projeto Alvorada, em cada um dos municípios beneficiados.
Suas funções principais eram as de divulgar informações sobre os programas, orientar os gestores municipais na implantação e acompanhar o processo (controle social).
Constituía a raiz local de um sistema descentralizado, que articulava, no território, níveis de governo, áreas de atuação (assistência, educação, saúde e geração de renda), além de diferentes atores sociais.
As instalações ficavam a cargo da prefeitura. A equipe, formada de 3 profissionais e 5 Agentes Jovens, era contratada por ONGs locais, parceiras da SEAS. Estas organizações eram também responsáveis pela capacitação das equipes dos portais e pelo monitoramento do processo.
A Secretaria de Estado de Assistência Social (SEAS) promovia a formação das ONGs parceiras e dos gestores municipais, por meio do CENAFOCO, visando garantir que, com a descentralização, não se perdessem os pressupostos básicos da proposta.
O Alvorada teve uma expressiva contribuição para o fortalecimento das pequenas ONGs locais, bem como das gestões dos municípios mais pobres deste país, consolidando, na base, os princípios da intersetorialidade e da gestão colaborativa para resultados.
Ainda buscando a articulação das ações no território, nos casos em que o município era beneficiado pelo Comunidade Ativa, o coordenador local dos dois programas era a mesma pessoa.
No infográfico a seguir, é possível ter uma visão geral do funcionamento dos Portais do Alvora.
Como se pode verificar, nos Portais do Alvorada também era previsto o acesso à internet e o funcionamento de uma rádio comunitária, como instrumentos de comunicação, o que aconteceu apenas em alguns casos. Até porque o sinal de internet não alcançava grande parte destes pequenos municípios.
Além dos programas do Alvorada, promoviam-se atividades culturais, esportivas e de lazer, sendo que cada Portal deveria dispor de uma biblioteca e de um pequeno “auditório” para reuniões e projeção de filmes.
Os portais eram a sede dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), onde funcionavam os Núcleos de Apoio às Famílias (NAFs), com suas funções de proteção (documentação, encaminhamento a serviços) e promoção (Plano de Desenvolvimento Familiar e Programa Socioeducativo).
Os Portais tiveram papel crucial na implantação do Cadastro Único de Famílias Pobres (CadÚnico), sobre o qual falaremos em outro episódio. Como iremos ver, só foi possível cadastrar mais de nove milhões de famílias, em pouco mais de um ano, devido ao trabalho hercúleo dos agentes jovens que aí atuavam, sob a supervisão dos coordenadores e dos profissionais de assistência do município.
Alvorada: um marco na evolução das políticas de superação da pobreza
Poderíamos dizer que o Alvorada apresentava um conjunto de princípios que o identificavam como exemplo de uma nova geração de políticas de combate à pobreza.
Entre eles destacavam-se a focalização (especialmente no território), a intersetorialidade/ multissetorialidade, a gestão para resultados, a descentralização/territorialização e a capacitação sistemática dos envolvidos.
Estes princípios poderiam ser encontrados em algumas outras iniciativas, mas o conjunto deles, em um único programa, constituía uma grande novidade.
Focalização
A focalização era territorial (Microrregiões e Municípios com baixo IDH), programática (15 programas em 9 ministérios), populacional (famílias em extrema pobreza) e de gênero (em nome da mãe).
A focalização territorial foi uma estratégia de extrema importância no Alvorada. O território teve um papel articulador, reforçado pelo Portal do Alvorada, funcionando como base concreta para a implantação de uma proposta colaborativa, que englobava intersetorialidade e multissetorialidade.
Na época existia uma grande discussão sobre focalização e universalização das políticas de assistência social, que considero altamente retórica. Os opositores da focalização argumentavam que, se a proteção social era constitucionalmente um direito de todos, seu caráter deveria ser universal. Eu sempre defendi a ideia de que, como a política de assistência visa diminuir a pobreza e a desigualdade, teria de focalizar suas ações nos pobres, com prioridade absoluta para a extrema pobreza e a vulnerabilidade. Logo, deveria ser uma política necessariamente focalizada nestes grupos.
O programa Renda Mínima, defendida pelo ex senador Eduardo Suplicy, é um exemplo do pressuposto da universalização. Em linhas gerais, a ideia era oferecer uma bolsa para toda a população, que seria devolvida pelos não pobres.
Intersetorialidade/multissetorialidade
A intersetorialidade era buscada, inicialmente, através da articulação entre as políticas de educação, saúde e renda, por serem estes os componentes do IDH. Além destas, propunha-se a inclusão de ações nas áreas de cultura, esporte e lazer, além de tecnologia e comunicação.
Na verdade, a intersetorialidade deveria ser um componente inerente a todas as políticas de superação da pobreza. Qualquer olhar um pouco mais sistêmico sobre este fenômeno evidencia seu caráter multidimensional.
Extrapolando as causas estritamente econômicas, veremos que a pobreza envolve fatores educacionais, de saúde, culturais, ambientais, habitacionais, de mobilidade urbana, de acesso à justiça e ao mercado de trabalho, além de aspectos subjetivos.
Ora, fenômenos multidimensionais exigem abordagens intersetoriais e multissetoriais, envolvendo diferentes níveis governos, sociedade civil, empresariado e universidades. O Alvorada incluía também a colaboração de voluntários, por meio de uma proposta denominada Férias Solidárias, em parceria com o Rio Voluntário, sobre a qual falaremos em outro episódio.
Políticas formuladas sob a égide da interdisciplinaridade e da multissetorialidade exigem estratégias colaborativas para sua execução, ou seja, o estabelecimento de parcerias multissetoriais.
Devo confessar que somente muito mais tarde pude me aprofundar no entendimento e na prática de propostas colaborativas, e perceber sua importância no equacionamento de problemas sociais complexos. Isto ocorreu entre 2012 e 2017, na implantação de uma Parceria Multissetorial, denominada Pacto pela Educação do Pará. Mas as raízes desta crença podem ser encontradas desde o início de minha vida profissional, tendo sido consolidadas na gestão do Alvorada.
Intersetorialidade na veia: Cerimônia do Projeto Alvorada com representantes da educação (Sonia Moreira), assistência (Wanda Engel) e saúde (José Serra).
Gestão para Resultados
Por outro lado, programas de enfrentamento à pobreza exigem uma Gestão para Resultados, capaz de maximizar seus impactos. Na verdade, diferentes setores vêm aumentando suas contribuições, mas a percepção e as evidências são as de que o problema se torna cada vez mais grave e complexo. Nosso grande desafio, portanto, é o de tornar o conjunto das iniciativas mais eficaz e efetivo.
Neste sentido, a gestão do Alvorada, que incluía 15 programas sob responsabilidade dos 9 ministérios, necessitava implantar uma gestão colaborativa focada em resultados.
Neste sentido, criou-se um Sistema de Monitoramento Físico-Financeiro, comum a todos os programas, o que permitia um acompanhamento partilhado, com a identificação de avanços e gargalos. O sistema permitia também que os recursos de um dado programa, que não estivesse conseguindo avançar, pudessem ser realocados em um outro, que se mostrasse mais efetivo. Isto era um enorme incentivo para acelerar a execução financeira de todos os programas.
Uma das vantagens de reunir diferentes programas em um “cluster”, como foi o Alvorada, é a de permitir a existência de uma base orçamentária comum, e o estabelecimento de uma certa competição no uso dos recursos. O que ocorre, em geral, é que as unidades orçamentárias têm grande dificuldade de execução. Reclama-se muito do montante do orçamento, mas não se consegue gastar nem a metade do que foi atribuído. Com a “estratégia Alvorada”, bobeou, dançou!
O sistema monitorava, além dos indicadores de processo, os resultados intermediários, relacionados a um conjunto de metas pactuadas.
Ainda como parte essencial da Gestão para Resultados, havia a proposta de implantação de um Sistema de Reconhecimento, através da criação do Prêmio Alvorada, para os municípios que atingissem essas metas.
Como não havia a previsão de sanções para os gestores municipais que, apesar do investimento substantivo de recursos, não conseguissem atingir as metas previstas, o Sistema de Reconhecimento pretendia criar a motivação necessária para a promoção de avanços.
Apesar de o Sistema de Reconhecimento, ter sido considerado um pilar importantíssimo da proposta de Gestão para Resultados, o Prêmio Alvorada não chegou a ser implantado, pela impossibilidade de se atingirem as metas antes do final da administração.
Descentralização/territorialização
Existe uma longa discussão a respeito dos mecanismos de concepção e implantação de uma iniciativa. Neste sentido, um programa pode ser caracterizado como top/down, quando há uma concentração de poder nos níveis superiores; ou down/top, quando reforça o protagonismo das bases.
Se o objetivo é a de redução da pobreza, a tendência é de se valorizar propostas down/top, por conta da importância da participação das organizações de base.
O Alvorada, apesar de ter sido uma iniciativa do governo federal, não poderia ser considerado top/down, pois sua execução era basicamente descentralizada, envolvendo especialmente os atores locais. Também não era essencialmente down/top, pelo papel exercido por estados e ministérios.
Na verdade, sem querer me deter nesta discussão, gostaria de ressaltar a importância que o município tinha para o Alvorada.
Havia a crença no poder integrador e transformador do território e na necessidade de se plantar uma semente do programa em cada um dos municípios mais pobres do país, o que foi feito, através do Portal do Alvorada.
Ocorre que um processo descentralizado, com foco em 2318 municípios poderia correr o risco de se fragmentar.
Para evitar o perigo da fragmentação, criou-se um sistema de capacitação de todos os envolvidos, com vistas a preservar e fortalecer os pressupostos básicos da proposta e construir uma base comum de conhecimentos, valores e significados.
Capacitação sistemática dos envolvidos
O processo sistemático de capacitação era realizado pelo CENAFOCO e pelas organizações parceiras. Do currículo, constavam informações sobre o Alvorada, dados diagnósticos sobre pobreza e desigualdade em geral e localmente, pressupostos, programas, estratégias de implantação, enfim, conhecimentos básicos para que todos os envolvidos entendessem o porquê, o para que e o como de sua atuação.
Até 2002 estavam em funcionamento 2.195 Portais do Alvorada, onde atuavam 15.396 pessoas, incluindo os Agentes Jovens. Todo este contingente havia participado de um consistente processo de capacitação.
Agentes Jovens do Portal do Alvorada
Em resumo…
Pelas características de sua concepção e implantação, por seu papel na expansão dos Programas de Transferência Condicionada de Renda, na consolidação da Rede de Proteção Social, e na implantação do Cadastro Único das Famílias Pobres, o Alvorada, pode ser considerado um marco no aperfeiçoamento das políticas públicas voltadas à superação da pobreza e da desigualdade no Brasil.
Apesar de não ter sido realizada uma consistente avaliação de processo, de resultados e de impacto, há um dado bastante expressivo com relação aos municípios brasileiros de baixo IDH.
Em 2000, quando o Alvorada foi implantado, os 2318 municípios de baixo IDH representavam 40% do total. Em 2010, apenas 01% dos municípios brasileiros tinham um IDH abaixo de 500.
Evidentemente, outros fatores contribuíram para este extraordinário avanço, mas o Alvorada deve ter tido um importante papel neste resultado.
Maiores informações sobre o Projeto Alvorada constam nesta apresentação.
No Episódio 10 você ficará sabendo como os programas de Transferência Condicionada de Renda, que se expandiram e diversificaram no Alvorada, passaram a constituir a Rede de Proteção Social, dando posteriormente origem ao Bolsa Família.
*Wanda Engel é diretora do Instituto Synergos no Brasil e foi ministra da Assistência Social durante o governo do PSDB na gestão do então presidente Fernando Henrique Cardoso.
**O artigo foi publicado no jornal Blog da ex-ministra em 13/02/20