Desde que quebrei o pescoço, aos 26 anos, passei a fazer da minha trajetória pessoal uma ferramenta de trabalho para ajudar a melhorar a vida de outras pessoas. Foi assim quando me expus, três anos atrás, na Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado, na tentativa de sensibilizar meus colegas a aprovar a sugestão legislativa que propunha a regulamentação do uso medicinal da cannabis e do cânhamo no Brasil.
Na ocasião, levei à sessão meu frasco de Mevatyl, medicamento com alta concentração de Tetra-hidrocanabinol, o THC, substância demonizada entre alguns parlamentares, mas que desde 2018 está disponível em farmácias brasileiras àqueles que têm condições de arcar com as onerosas borrifadas do spray aprovado pela ANVISA.
Contei aos parlamentares que a paralisia, além da perda de movimentos, vem acompanhada de diversas questões que são tratadas com a cannabis medicinal: espasmos, dores neuropáticas, distúrbios no intestino e na bexiga, falta de energia, insônia e, consequentemente, tristeza.
No fim, o projeto, que estava prestes a sair de pauta, acabou sendo aprovado com apenas um voto contrário, o do senador Eduardo Girão.
Hoje, três anos após essa memorável sessão na CDH, em que a empatia venceu, ao invés de estarmos celebrando acessos à cannabis medicinal, estamos lutando para não perdermos o pouco que já avançamos nesta pauta. Desta vez, no entanto, o embate não é com parlamentares negacionistas, mas com o Conselho Federal de Medicina, órgão que mais deveria trabalhar para ampliar acesso à saúde da população.
A recente resolução 2.324/2022 do CFM é um retrocesso, pois restringe o tratamento com cannabis apenas ao uso do Canabidiol, o CBD, uma única substância das mais de 700 identificadas na planta. Para piorar, também restringe o uso do CBD a apenas duas doenças, ignorando as mais de 30 condições de saúde que hoje já são tratadas com sucesso por meio da cannabis medicinal – e em dezenas de países.
Pessoas com esclerose múltipla, por exemplo, são beneficiadas com a cannabis, relaxando a musculatura, reduzindo as dores crônicas, melhorando o sono e protegendo os olhos dos comuns ‘borrões’ ocasionados pelas lesões no cérebro. Outros benefícios podem ser alcançados por quem sofre de ELA, a esclerose lateral amiotrófica, aliviando a espasticidade e as dores.
Eu poderia, por horas, elucidar outros inúmeros ganhos que a cannabis medicinal também pode trazer às pessoas com Alzheimer, Autismo, Epilepsia, Parkinson, Glaucoma, Síndrome de Tourette, Câncer, Fibromialgia…
Enquanto o CFM restringe acessos, o restante do mundo aponta para diversos países aprovando leis que permitem o plantio de cannabis com fins medicinais: Alemanha, Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, Holanda, Israel, Reino Unido e nosso vizinho Uruguai são apenas alguns exemplos.
O Conselho Federal de Medicina não pode ir contra os estudos médicos e as inúmeras evidências científicas que já comprovaram a eficácia da planta, assim como não pode colocar uma mordaça na autonomia médica, limitando a prescrição da cannabis medicinal a um grupo restrito de pacientes. A dor não é seletiva, o tratamento não pode sê-lo.
Para sustar os efeitos desta portaria que desconsidera o quanto a cannabis medicinal vem contribuindo para melhorar a qualidade de vida de milhares de crianças, jovens, adultos e idosos do nosso país e que só retrocede nossa luta, apresentei no Senado um Projeto de Decreto Legislativo. Faremos de tudo para que a matéria tramite em regime de urgência, porque nada pode ser mais urgente que a saúde das pessoas.
Precisamos olhar para frente e avançar de fato. O Brasil não pode dar um passo à frente e dois para trás. Regulamentar a cannabis medicinal é urgente por ser uma pauta de saúde pública.
Permitir que pessoas com e sem deficiência se tratem com a cannabis, sem marginalização, mas com segurança, controle e respeito, demove o status do Brasil de nação que caminha para trás, que exclui e só garante saúde àqueles que podem pagar.
A sociedade brasileira é a favor da cannabis medicinal justamente por entender que um país justo é aquele onde saúde e qualidade de vida não são privilégios, mas direitos inerentes de todo ser humano.
Prova disso é a pesquisa de opinião solicitada por mim ao Instituto de Pesquisa DataSenado que apurou, em 2019, que a população brasileira é favorável ao tema. Foi detectado que a maioria dos entrevistados (87%) declarou saber que substâncias retiradas da cannabis podem ser utilizadas em medicamentos para tratar doenças e que 79% se mostraram favoráveis à distribuição gratuita desses remédios pelo SUS.
O Conselho Federal de Medicina não pode ignorar evidências científicas, mas, sobretudo, não pode dar às costas aos pacientes, que unidos estão saindo às ruas contra essa portaria.
A voz dessas pessoas clama por acessos, não restrições. É um coro uníssono por empatia.
*Mara Gabrilli é senadora da República pelo estado de São Paulo, representante do Brasil no Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e fundadora do Instituto Mara Gabrilli.