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“O mundo está acabando, e nós não podemos parar”, relata enfermeira na linha de frente do combate à covid-19

Mulher e profissional da saúde há 18 anos, sendo 10 como enfermeira, Claudia Aires Ribeiro está na ponta do iceberg da maior crise sanitária da história recente. Trabalhando na Unidade Básica de Saúde (UBS) nº 1 de Sobradinho II, no Distrito Federal (DF), ela integra a linha de frente do combate ao coronavírus, e relata uma rotina de dedicação, exaustão e descaso com os profissionais da saúde da capital do país.

Frases de incentivo para os profissionais de saúde e doentes compõem o cenário dos corredores da UBS.

“Vemos todos os órgãos de governo parados por causa da pandemia, e nós não paramos nunca. Isso é um ato de amor. Somos a única Secretaria que não está parando para nada, que estamos com licença-prêmio suspensa. Ano passado foram suspensas até férias e folgas. O mundo está acabando, e nós não podemos parar”, desabafou.

Filiada ao PSDB e candidata à deputada federal nas eleições de 2018, ela contou que apesar das unidades de Atenção Primária à Saúde (APS), como UBS e postos de saúde, serem responsáveis por 70% dos atendimentos por covid-19 do sistema brasileiro, faltam materiais para trabalhar. Servidores são forçados a tirar dinheiro do próprio bolso para comprar Equipamentos de Proteção Individual (EPI), como capotes, luvas e máscaras, e até mesmo para reparos estruturais em seus locais de trabalho.

“A gente corre atrás de tenda para vacinação, de profissional para trabalhar, de material, de tudo. Não tem EPI para todo mundo, especialmente capote. Luva, a gente tem ganhado muita doação. Se não fossem as doações, também não teria para todo mundo”, revelou.

“Os servidores estão expondo a vida aos riscos de contágio por covid e morte, e mesmo assim permanecem, tirando do próprio bolso. Para as UBS funcionarem, não tem contrato de manutenção. A gente compra cano para consertar, paga eletricista, encanador para desentupir os banheiros, para que a própria comunidade possa usar. Tudo caindo aos pedaços, e o servidor consertando tudo do seu próprio bolso. Esse mesmo servidor que não é valorizado”, lamentou a enfermeira.

“A gente vê o profissional da atenção primária dando suporte físico, nutricional e emocional para os pacientes. Quer dizer, os profissionais da APS estão fazendo o que o governo deveria estar fazendo”, acrescentou.

Claudia destacou ainda o fato de boa parte dos recursos para a saúde acabarem sendo destinados para grandes hospitais, sendo que a maior demanda por atendimento está nas pequenas unidades de saúde.

“Na ala dos sintomáticos-respiratórios nas UBSs é onde a gente atende até 70% da população que está com covid. Os hospitais precisam muito de ajuda, estão sobrecarregados e o sistema está quebrado. Mas não são eles que atendem a maioria. Quem atende a maioria dos pacientes de covid é a Atenção Primária, que são os postos de saúde, as UBS, as equipes de Estratégia Saúde da Família (ESF). É lá que não tem profissional, não tem agente comunitário de saúde, não tem médico, enfermeiro, técnico. Se tivesse, os hospitais estariam mais vazios. É uma inversão de valores, um modelo hospitalocêntrico, que é centrado no hospital”, constatou.

Política de sangue

Formada em enfermagem há dez anos, Claudia criticou a falta de comunicação e transparência entre os governos federal, distrital e os profissionais da saúde, que não foram levados em consideração na hora de delinear o plano de imunização. Sobrecarregados pela crescente demanda de atendimentos, os funcionários precisam se desdobrar para dar conta de uma campanha de vacinação apressada e sem planejamento.

“A primeira coisa que dificulta o nosso trabalho nessa pandemia é o fato de as coisas serem feitas de cima para baixo, sem olhar a dinâmica que está acontecendo embaixo, nas regionais de saúde, na ponta do iceberg que é a atenção primária. São dadas as ordens de cima para baixo, no tom ‘faça-se cumprir’, e isso é muito difícil”, disse.

“Vacina não é assim, falou que vai vacinar e pronto. Tem que ter uma logística. Tem que ter caixa climatizada, tem que aumentar e trazer a quantidade de doses. A Secretaria [de Saúde do DF] não tem carro para estar para cima e para baixo levando dose de vacina, não tem essa infraestrutura toda. Isso é um desrespeito. É você pegar profissionais que já estão levados à exaustão e desrespeitá-los. É fazer caridade com o chapéu dos outros, fazer política com o nosso sangue”, avaliou a tucana.

Ela lembrou ainda que, para que a campanha de imunização tenha sucesso, existe uma etapa fundamental: ter vacinas em estoque para aplicação.

“As vacinas estão chegando a conta-gotas, um tiquinho de cada vez. Demorando muito para baixar os grupos de faixa etária, para vacinar todo mundo. Por quê? Não tem vacina suficiente”, apontou.

Sistema em colapso

Para a enfermeira, o Sistema Único de Saúde (SUS) está em colapso. Os números alarmantes de mortes devido ao coronavírus agora sobrecarregam uma rede que já operava no limite.

“O governo quer que a Atenção Primária dê conta de continuar atendendo tudo como se nada tivesse acontecido. Continue atendendo gestante, idoso, hipertenso, diabético, todas as comorbidades, como se nada estivesse acontecendo. Todavia, o governo não reforça a quantidade de pessoas, e mesmo assim quer que tudo fique sendo atendido, que a gente tome conta de tenda, de vacinação. Agora, em abril, vem a H1N1, e a gente vai ter que dar conta também, sendo que todas as Unidades Básicas de Saúde estão atendendo covid”, pontuou.

Vem daí a necessidade, em sua opinião, de estar atento a quem levanta a bandeira da importância do SUS e da saúde como um todo.

“A gente tem que parar e pensar em saúde. A gente não parou e pensou, e é por isso que o covid pegou a gente nessa situação desprevenida, e não estamos conseguindo dar uma resposta rápida para a população. O nosso SUS está ferido, está sendo sucateado, está havendo superfaturamento, má administração, má gestão”, salientou.

“O SUS foi feito de baixo para cima. Era para que o povo dissesse, através dos conselhos de saúde, onde tem trabalhador, gestor e usuário representando os três segmentos, o que o povo está precisando. Mas, infelizmente, o SUS não está funcionando de baixo para cima, mas de cima para baixo. Os conselhos de saúde não têm nenhuma autonomia. O que eles falam não é respeitado. Os governantes fazem o que querem. A população precisa ser ouvida”, ponderou.

Valorização dos profissionais

Com o sistema de saúde sucateado, servidores sobrecarregados e desvalorizados, os prospectos para o futuro não são muito animadores. Mas a enfermeira Claudia vê a educação, tanto da população quanto dos próprios profissionais, como o caminho para a mudança.

“Aí entra a questão da aprovação da carga horária de 30 horas semanais no Congresso Nacional. Essa legislação está lá parada há décadas. E o piso salarial da enfermagem. Tem enfermeiro na iniciativa privada ganhando mil e poucos reais por mês. Uma pessoa que estudou cinco anos em uma faculdade”, ressaltou. “Hoje, a vida do país está nas mãos dos profissionais de saúde. Esses mesmos profissionais de saúde não têm acesso a um mestrado, um doutorado, bons cursos”, apontou.

“Se a gente está pensando em economia, a gente tem que pensar em saúde. Porque o trabalhador precisa estar saudável para conseguir trabalhar e levantar a economia. Se a gente está pensando em educação, tem que pensar em saúde, porque morto não estuda. Se a gente está pensando em emprego, precisa pensar em saúde, porque se a pessoa não estiver sadia, se estiver doente, prostrada na cama, ela não trabalha. O empresário que não tem saúde não tem como tocar a empresa dele para dar emprego. Tudo está ligado à saúde, e as pessoas não conseguem enxergar isso”, considerou.

Para a tucana, a educação muda o mundo. Nesse sentido, é preciso ampliar a grade curricular das escolas para que ofereçam também noções de saúde, direito administrativo e constitucional.

“A gente tem uma grade curricular muito pobre, que não prepara o cidadão para a vida. Preparar para a vida é você ter uma noção sanitária, de comportamento como cidadão, uma noção de patriotismo, de como você, enquanto indivíduo, consegue influenciar o teu país em todas as áreas de desenvolvimento”, explicou.

“Por exemplo, a gente está lidando com esse vírus e a nossa população não tem educação sanitária nenhuma. Você pede para usar uma máscara e as pessoas são ignorantes. Elas não entendem a situação. Como que um vírus pode destruir todo um país porque impede as pessoas de trabalharem, e vai quebrar a economia. Elas não têm essa noção sanitária de que o seu comportamento influencia na vida do outro. Isso está faltando lá no nosso berço, na nossa educação”, completou ela.