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No Episódio 15 da sua série, Wanda Engel fala sobre conceitos que nortearam sua gestão

Nos episódios anteriores, buscamos descrever o processo de concepção das políticas e programas, voltados à superação da pobreza, entre 1999 e 2002, bem como as estratégias de implantação utilizadas: a capacitação constante dos envolvidos, o fortalecimento das organizações parceiras, a mobilização da sociedade, através da televisão, e a oferta de espaços de participação, por meio do voluntariado.

Esta é a parte visível da história, mas, para entender melhor as decisões tomadas neste período, é importante que se conheçam os conceitos que as guiaram.

Na verdade, durante todo o tempo em que fui gestora, nos níveis municipal e federal, busquei estabelecer um diálogo constante entre teoria e prática, para melhor orientar meu trabalho.

Superando o pragmatismo, que considera a prática como a única fonte para a construção de conhecimento e para a transformação da realidade, e o idealismo, que acha que a pura reflexão tem, em si, o poder transformador, fico com a dialética. Esta corrente propõe que a construção do conhecimento, sobre a realidade que se deseja transformar, parta das questões geradas pela prática. Estas questões devem ser respondidas por meio da reflexão teórica, e as respostas, testadas na prática. Daí surgem novas questões, mantendo-se um constante diálogo entre prática e teoria.

Enfim, considero que não há nada mais prático que uma boa teoria e, que o “ir e vir” entre prática e teoria é o melhor caminho para se conhecer e transformar uma dada realidade.

Minha própria vida profissional foi marcada por este diálogo. Concomitante com a prática docente, em escolas públicas, busquei apoio teórico em um curso de licenciatura. A prática do magistério, na formação de professores (Instituto de Educação do Rio de Janeiro), e os desafios do exercício da supervisão pedagógica neste estabelecimento, me encaminharam para o mestrado em educação. Após o riquíssimo cabedal de questões, gerado na direção do Brizolão da Mangueira, fui buscar respostas no doutorado em educação. Enfim, um caminho de questionamentos práticos, de busca de respostas teóricas e de testagem destas respostas em uma prática subsequente.

Nesta linha, para informar a gestão da Secretaria de Estado de Assistência Social (SEAS), considerava fundamental responder, mais claramente, à questão: aAfinal, o que é pobreza e o que é desigualdade?

Revisitando o conceito de pobreza

A pobreza foi vista, historicamente, como um fenômeno natural, que sempre existiu e sempre existiria. Na impossibilidade de erradicá-la, restaria às políticas públicas aliviar suas consequências. Como a principal consequência da pobreza era a falta de acesso a bens materiais, que garantissem a sobrevivência dos mais pobres, o objetivo das políticas era a distribuição destes bens, especialmente de comida. Daí que, até a década de oitenta, a principal estratégia dos programas de “combate à pobreza” era a distribuição de cestas básicas.

A consolidação de um novo conceito de pobreza, que já vinha sendo construído e utilizado desde o início da década, deu-se por meio de um estudo do Banco Mundial, publicado em 2000, e que trouxe importantes contribuições para a questão.

Este estudo reafirmava o caráter não natural do fenômeno da pobreza, ou seja, o fato de ele ser socialmente produzido, e ressaltava a multidimensionalidade de suas causas e consequências.  Além disto, destacava o papel da família, como unidade de produção, de reprodução e, portanto, de superação da pobreza.

Ele contribuiu também para a estruturação de algumas premissas que passaram a orientar a concepção e o aperfeiçoamento das políticas públicas no Brasil, a partir de então. Eram elas:

  1. A pobreza não é um fenômeno natural nem exclusivamente econômico. Logo, o crescimento e a estabilidade econômica são condições indispensáveis, mas não suficientes, para a sua superação;
  2. O impacto do crescimento econômico na diminuição de pobreza ainda é menor nos países com altos índices de desigualdade, como o Brasil. Logo, é necessário desenhar estratégias de superação da pobreza associadas à redução da desigualdade, que levem em consideração seus principais eixos: econômico, social, etário, racial, geográfico e de gênero;
  3. A pobreza é um fenômeno multidimensional, incluindo a falta de acesso aos direitos econômicos, sociais e humanos. Logo, a superação da pobreza exige a oferta conjugada de oportunidades de desenvolvimento, focalizada nos mais pobres;
  4. Existe um “núcleo duro “da extrema pobreza dificilmente alcançado pelas políticas universais de desenvolvimento humano, social e econômico. Logo, há necessidade de se construir uma Rede de Proteção Social, capaz de alcançar a extrema pobreza, garantir as condições mínimas de sobrevivência e funcionar como primeiro passo para um processo de desenvolvimento. Esta rede deve também ser capaz de evitar que famílias resvalem para a situação de pobreza, em momentos de crise econômica, social, sanitária ou idiossincrática (no interior de uma família);
  5. A vivência de uma situação de extrema pobreza pode produzir consequências subjetivas, como fatalismo, imediatismo e baixa autoestima. Logo, devem ser incluídas, dentre as estratégias de superação da pobreza, ações socioeducativas capazes de reverter tais tendências subjetivas;
  6. A pobreza tende a reproduzir-se intergeracionalmente, por meio de fatores que afetam as possibilidades de desenvolvimento dos sujeitos em cada uma das etapas do seu ciclo de vida. Logo, é necessário que as estratégias de superação da pobreza prevejam políticas de proteção social e desenvolvimento para cada uma das etapas do ciclo de vida (0 a 6, 7 a 14, 15 a 24, 25 a 60, acima de 60) capazes de neutralizar tais fatores;
  7. A pobreza nas áreas rurais e pequenas cidades diferencia-se, em grau e especificidade, da que habita a periferia dos grandes centros urbanos. Logo, estratégias de superação da pobreza devem ser formuladas levando-se em consideração tais especificidades.

Reflexos nas propostas 

A multidimensionalidade do fenômeno, bem como as características inerentes a seu processo de superação, denotava a necessidade de se conceberem políticas integradas que, partindo de ações protetivas e socioeducativas, fossem capazes de propiciar o alcance da autonomia financeira, através do acesso a oportunidades de desenvolvimento econômico.

Segundo o modelo então concebido, e expresso no infográfico abaixo, o ponto de partida, essencial, mas não suficiente, seria a existência de uma Rede de Proteção Social, que incluísse um programa socioeducativo, e que garantisse as condições mínimas para o início de um processo de promoção, rumo ao desenvolvimento integral e à autonomia.

Modelo de Política Integrada de Superação da Pobreza (Wanda Engel, 2001)

A partir destas condições básicas, e por meio do mecanismo das condicionalidades, seria alicerçado um processo de desenvolvimento humano e social.

O processo de desenvolvimento humano deveria incluir o ingresso e permanência na escola e o acesso a serviços de saúde, garantindo a qualidade destes serviços. Deveria também ser definida a prioridade de inserção em iniciativas culturais, esportivas e de lazer, além de condições habitacionais adequadas.

No campo do desenvolvimento social, a ênfase seria o fortalecimento das famílias, especialmente das mães, e o apoio a organizações locais, além da criação de espaços positivos de socialização, como praças, parques infantis, centros comunitários, centros de juventude, centros de convivência para a terceira idade, bibliotecas e salas de projeção.

As propostas de desenvolvimento humano e social teriam por objetivo promover as capacidades necessárias ao aproveitamento de oportunidades econômicas.

No campo do desenvolvimento econômico estaria a oferta de qualificação e requalificação para o mundo produtivo assim como as oportunidades de inserção positiva no mercado de trabalho.

Tais oportunidades gerariam novas capacidades, que ensejariam o acesso a novas oportunidades, estabelecendo-se uma espiral positiva de desenvolvimento, rumo à autonomia e à superação sustentável da pobreza.

Assim, as políticas de proteção, desenvolvimento humano, social e econômico, organicamente estruturadas, e focalizadas nos mais pobres e vulneráveis poderiam tornar-se mais efetivas no processo de superação da pobreza. Todas estas ações deveriam incidir sobre as mesmas famílias, pois somente o efeito sinérgico, gerado por seu conjunto, seria capaz de ter um impacto consistente na transformação da vida destes grupos familiares.

Note-se que esta proposta de política integrada para superação da pobreza incluía a necessidade da criação de mecanismos de atuação interdisciplinar, que envolvessem prioritariamente os setores de assistência social, educação, saúde, esporte, cultura e lazer, além de habitação e trabalho. Conseguimos implantar o modelo? Não totalmente, mas avançamos na consolidação de seus pressupostos.

Refletindo sobre desigualdade

Para início de conversa, é preciso destacar que o conceito de pobreza é bem antigo, tendo evoluído de uma versão de fenômeno natural (imutável), para a de fenômeno passível de produção, reprodução e, portanto, de superação.

Já a ideia de “igualdade social” apesar de ter origem no mundo greco-romano, só ganhou consistência e se expandiu muito recentemente.

Podemos encontrar o ressurgimento desta ideia por ocasião da revolução comercial, responsável pela ascensão da burguesia, a quem interessava incrementar seu poder, em relação à nobreza e ao clero.

Contra o clero, o iluminismo e a ciência. Contra a nobreza, a ideia de que todos nasciam iguais, como uma “tábula rasa”. A revolução francesa tornou-se a grande difusora da ideia de igualdade social.

Esta ideia, entretanto, conflitava com uma realidade marcada pelo colonialismo, pelo escravagismo e pela exploração econômica. Como justificar esta discrepância entre o ideal de igualdade e a desigualdade real?

A própria ciência, como por exemplo a antropometria, viria justificar a dissonância. Ao fazer medições do crânio de homens e mulheres, brancos, negros e asiáticos, chegava à conclusão de que o volume do cérebro dos homens brancos era o maior, “confirmando” sua superioridade intelectual. Com isto justificava-se “cientificamente” a supremacia masculina branca. Mesmo que os direitos fossem iguais, homens brancos eram mais inteligentes!

Após a Segunda Guerra, especialmente com a criação da ONU, ressurge o ideal da igualdade social e do direito, consubstanciada na Declaração dos Direitos Universais. Um ideal ainda em franca dissonância com um real discriminador e excludente.

Firmou-se, então, o “padrão” socialmente valorizado de homem, rico, branco, cristão, jovem, heterossexual, saudável, sendo que todos os “diferentes” eram considerados inferiores e passíveis de serem discriminados, excluídos e, no limite, exterminados.

Atualmente, parte da sociedade até concorda abstratamente com o conceito de igualdade, e com a necessidade de ações voltadas para aqueles historicamente mais excluídos, mas se opõem ferozmente a políticas que venham a prejudicar qualquer um de seus “direitos adquiridos” que, por não serem universais, representam verdadeiros privilégios. Aliás, os direitos devem ter sempre um caráter universal, tendo, nos privilégios, sua antítese. 

Sabemos todos que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, especialmente com relação à desigualdade de renda.

Diminuir a desigualdade de renda depende de estreitar as diferenças entre ricos e pobres, o que pode ser feito, tanto pelo encolhimento da riqueza dos mais ricos, quanto pela diminuição da pobreza dos mais pobres.

O índice de Gini, utilizado para medir a desigualdade de renda, após aumentar assustadoramente no auge do período inflacionário, teve uma queda no governo Collor, quando foi retido o dinheiro dos mais ricos.

A primeira diminuição mais sustentável do índice de Gini se deu em 2001, possivelmente em função de propostas como o Alvorada e a Rede de Proteção Social, com seus programas de Transferência Condicionada de Renda (TCR), efetivamente focalizados nos mais miseráveis.

A tendência à diminuição do Índice de Gini se manteve até 2015, acompanhado do aumento de renda dos 40% mais pobres, em parte pela manutenção e ampliação dos programas de transferência condicionada que, a partir de 2003 foram integrados sob a denominação de Bolsa Família.

A crise econômica, instalada a partir de 2015, reverteu esta tendência, com o aumento da desigualdade, o que deve ser dramaticamente aprofundado, em função da pandemia do COVID 19.

A desigualdade de renda é apenas o arcabouço de desigualdades em diferentes campos, como o educacional, o sanitário, o habitacional e o tecnológico, dentre outros.

Precisamos nos dar conta das consequências, extremamente negativas, de uma sociedade desigual, que convive com a crença na igualdade de oportunidades para todos e na meritocracia. Esta incongruência, especialmente em áreas urbanas, e com acesso à informação, gera um intenso sentimento de injustiça e ressentimento, desencadeador da quebra do contrato social e da violência. (vide artigo O Oscar da Desigualdade). Afinal, o cerne do contrato social é a igualdade. 

Deve-se ressaltar que a democracia, desde suas origens, é baseada nos princípios da igualdade, da liberdade e da participação. Não há sociedade democrática sem que se concretizem estes três princípios. A democracia não pode conviver com altos níveis de desigualdade.

No episódio 16, vamos apresentar uma análise da evolução das políticas públicas de redução da pobreza, caracterizando cinco gerações, que vão, desde propostas de distribuição de cestas básicas, até o que poderia ser uma nova versão do Bolsa Família. Não perca!