Muito já se falou sobre as consequências da pandemia nos grupos mais vulneráveis. Isto porque, apesar do caráter “democrático” do vírus, já constatamos que suas consequências, incluindo o grau morbidade, afetam mais cruelmente os grupos mais pobres e vulneráveis.
Aliás, um dos efeitos do vírus está sendo o de desvendar as condições de vida destes grupos que, até então, pareciam ser invisíveis ao olhar da sociedade em geral.
Tais condições de vida incluem o desemprego, o subemprego ou a informalidade e, consequentemente, uma renda que não lhes garante sequer a própria subsistência, além da falta de acesso à previdência social.
Vivendo em conglomerados urbanos densamente povoados, famílias numerosas habitam casas minúsculas, húmidas, sem ventilação, sem saneamento (água e esgoto), sem vias de acesso carroçáveis, nem praças públicas.
Sujeitos a um transporte coletivo precário e de péssima qualidade, vivem o horror da violência cotidiana e da exploração econômica (água, gás, transporte e tecnologia), exercida pelo poder local: tráfico de drogas ou milicianos.
Têm acesso a uma educação de baixa qualidade, em escolas carentes de infraestrutura, inclusive tecnológica. Seus professores e gestores, mal formados, sofrem, em geral, de problemas idênticos a de seus alunos e familiares.
A eles é oferecido um serviço de saúde pública deficitário, muitas vezes sucateado por gestões corruptas ou incompetentes.
É neste contexto multidimensional de carências que o vírus chega, “arrebentando”!
Sem condições reais de isolamento, e sem contar com saneamento básico, acelera-se o contágio. Seguem-se as dificuldades de acesso a hospitais, a testes, a respiradores, e a leitos de UTI. Multiplicam-se os óbitos, e os desafios para sepultar os entes queridos.
No campo econômico, morrem os empregos, minguam as oportunidades de trabalho e renda, ressurge a fome, aprofunda-se a miséria.
Por outro lado, o fechamento das escolas e a dificuldade que têm os sistemas públicos de implantar o ensino remoto, somado `as possíveis consequências socioemocionais da quarentena, tanto para professores quanto para alunos (perdas, violência doméstica, falta de dinheiro), atingem mais intensamente as escolas públicas, aumentando o fosso da desigualdade social.
Por todos estes motivos, torna-se fundamental agirmos na quarentena, para mitigar seus danos e planejarmos efetivamente o “day after” para as áreas de saúde, assistência e educação.
Na saúde, seria essencial priorizar o reforço e o aperfeiçoamento do SUS, este extraordinário bem público existente no Brasil e em apenas cinco outros países no mundo (Canadá, Dinamarca, Suécia, Espanha e Portugal).
Haveria também que reforçar o SUAS (Sistema Único de Assistência Social) e consolidar nossa rede de proteção social, especialmente através do Bolsa Família. O CadÚnico deveria ser o instrumento básico para transferência de renda, com a inclusão dos “barrados no mercado formal”: empregados informais e temporários, trabalhadores por conta própria e desempregados.
Interessante constatar como na pandemia reforçou-se a importância da existência de redes de proteção informal, tanto entre os pobres, com a atuação de organizações locais, quanto entre as diferentes classes sociais, através do voluntariado e do investimento social privado (só o Itaú disponibilizou, com a urgência necessária, 1 Bi).
Enquanto o governo patinava no processo de prestação da ajuda monetária de R$ 600, exigindo o CPF do beneficiário, a rede informal já estava a postos, nas áreas mais pobres, para enfrentar as consequências do Covid. Aliás, gostaria de entender por que o CPF, que deveria ser o número básico de identificação para as áreas econômica e social, é suspenso no caso de o portador não ter votado!!!!
Na área da educação, seria fundamental construir um novo calendário escolar; planejar o retorno, incluindo a realização de um teste diagnóstico para o atendimento às diferenças de aprendizagem; criar estratégias de apoio socioemocional para alunos, professores e famílias, além de implantar medidas de segurança sanitária. As estratégias do retorno às aulas deveriam ser intersetoriais, incluindo necessariamente as áreas de educação, assistência e saúde, além de cultura, esporte e lazer.
A mais importante proposta para este day after seria, entretanto, uma ação intencional e sistemática, dedicada ao fortalecimento de valores como igualdade, respeito ao diferente, solidariedade, colaboração, valorização da ciência, uso de evidências na formulação de políticas públicas, gestão pública voltada para resultados, com foco nos mais vulneráveis.
Não podemos esquecer de que a “semente do mal”, que produz e reproduz a desigualdade, é uma visão de mundo que considera aquele que é diferente do padrão socialmente valorizado – homem, branco, jovem, saudável, cristão, rico, heterossexual – como inferior, merecendo por isto ser discriminado, excluído e, no limite, exterminado.
*Wanda Engel é ex-ministra da Secretaria de Assistência Social do governo do ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Formada em geografia, mestre e doutora em educação.
Artigo publicado originalmente no Blog da Wanda Engel, em 13 de maio de 2020.