Opinião

“Vetar os surdos de informação é criminoso”, por Mara Gabrilli

Foto: Agência Brasil

Emissoras de televisão precisam oferecer os recursos de acessibilidade previstos em lei, para que todos os cidadãos brasileiros possam ter acesso à informação na crise do novo coronavírus

Lais Yasunaka, 38, professora de Libras e membro da minha equipe de trabalho, ouviu poucos sons em sua vida. Um antibiótico usado para combater uma infecção a deixou surda quando ainda estava na maternidade. Para ter acesso à educação — concluir duas graduações e uma pós — precisou enfrentar um Brasil excludente aos que não ouvem. Ao meu lado e de nossa equipe, Lais vem trabalhando para ajudar outros surdos a terem acesso à informação. Informação que em tempos de pandemia vem salvando vidas.

Diante da situação que assola nosso país, sem acesso às notícias, os surdos estão sendo sucumbidos ao contágio. Pergunto-me como as emissoras de TV podem ignorar o fato de que o Brasil possui cerca de 10 milhões de brasileiros com deficiência auditiva que estão sendo excluídos do acesso a informações fundamentais para se proteger da pandemia da covid-19. O vírus não escolhe classe social. Não escolhe condição física, sensorial ou intelectual. Não ouvir não torna ninguém imune a contrair qualquer doença.

Neste sentido, o jornalismo através da televisão se tornou fundamental para as pessoas, seja ao levar informações de interesse público, seja para combater a desinformação — as chamadas fake news, extremamente prejudiciais para a população — e, acima de tudo, para gerar conteúdo de credibilidade acessível a todo cidadão brasileiro. Mas os surdos, mais uma vez, não são contemplados por grande parte do conteúdo propagado pelos veículos.

Na televisão, faz-se necessário a janela de Libras, para quem se comunica por meio dessa língua. Por outro lado, existem surdos que são oralizados, fazem leitura labial e são alfabetizados em português; estes necessitam de legendas escritas. Recursos que as emissoras estão ignorando, inclusive, quando as próprias autoridades públicas utilizam em seus pronunciamentos oficiais.

O governo do estado de São Paulo, por exemplo, tem utilizado Libras e legenda em todos seus pronunciamentos, no entanto, as emissoras, cada qual com seu próprio sistema de geração de imagem, não se adequam às normas técnicas para transmitir o conteúdo e ignoram a lei. Pior ainda, quando divulgam os pronunciamentos acessíveis — com a janela de Libras e legenda —, muitas vezes, cobrem a imagem com o famoso GC. Uma prática que, além de discriminatória, desconstrói o trabalho de quem está preocupado de fato em falar com todos os brasileiros.

Como excelente exemplo de quem faz uso correto desses recursos, temos a TV Cultura que, recentemente, inaugurou o “Flicts”, um núcleo de acessibilidade para produção de Libras, audiodescrição e closed caption na programação. O Flicts possui três estúdios para gravação de Libras (Linguagem Brasileira de Sinais), dois ProTools com cabines de locução para audiodescrição e produção de closed caption (ou legenda oculta) e duas cabines para Via Voice e uma máquina de estenotipia. Uma ação a ser enaltecida e copiada por outras emissoras.

Lembro ainda que essa não é uma responsabilidade apenas dos veículos de comunicação, e que o primeiro a dar esse exemplo deve ser o poder público, inclusive cobrando essa responsabilidade dos veículos. Por isso, tenho pautado vários governadores e autoridades a terem um intérprete de Libras ao seu lado, in loco, sempre que fizer um pronunciamento, uma coletiva ou uma live em suas redes sociais. Não podemos esperar que os veículos se adequem para falar com todos os brasileiros. A pandemia está aí. Ela acontece hoje. Um dia sem conteúdo acessível é um dia sem informação. E um dia faz toda a diferença quando falamos de urgência, quando falamos de vidas.

Garantir que sua fala chegue para todos é uma atitude que, além de obrigatória, emana espírito público. O que vem ocorrendo, no entanto, é a antítese do que podemos considerar público, com diversos veículos divulgando conteúdo sem acessibilidade. Além de colocar parte do país em risco, excluir essa significativa parcela da população das mais importantes informações durante a crise é discriminação, e discriminação é crime.

A Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015), relatada por mim ainda na Câmara dos Deputados, em seu artigo 67, prevê que os serviços de radiodifusão de sons e imagens devem permitir o uso dos seguintes recursos, entre outros: subtitulação por meio de legenda oculta, janela com intérprete da Libras, audiodescrição. Infelizmente, como já mencionado, na maioria dos casos essa determinação não vem sendo cumprida.

Recentemente, o governo federal publicou no DOU (Diário Oficial da União) o Decreto 10.288/2020, que define como essenciais as atividades e os serviços relacionados à imprensa e comunicações. O decreto atinge veículos de comunicação públicos no âmbito federal, estadual, distrital e municipal, os veículos privados e pessoas físicas. Agora se faz necessária a adoção das medidas cabíveis para cobrar e garantir das emissoras de TV o oferecimento dos recursos de acessibilidade previstos em lei, para que todos os cidadãos brasileiros possam ter acesso à informação.

No próximo 24 de abril é celebrado o Dia Nacional da Língua Brasileira de Sinais — língua, aliás, oficial em nosso país, juntamente ao português. Faço aqui um apelo para que as emissoras de TV e as autoridades brasileiras não excluam os cerca de 10 milhões de brasileiros que contribuem para esse país, têm direitos, cumprem seus deveres e são tão cidadãos quanto qualquer outro brasileiro.

(*) Mara Gabrilli – senadora pelo PSDB de São Paulo. Representante do Brasil no Comitê sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU (Organização das Nações Unidas). É publicitária, psicóloga e fundadora do Instituto Mara Gabrilli. Já foi secretária municipal da capital paulista, vereadora da cidade de São Paulo e deputada federal por dois mandatos.

Artigo publicado originalmente pelo portal IG, em 10 de abril de 2020