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“É preciso juntar forças globalmente”, diz brasileira do Médicos Sem Fronteiras com experiência em epidemias

Foto: Divulgação / Médicos Sem Fronteiras

O jornal Zero Hora publicou na última semana uma entrevista com a médica Carolina Batista, que presta assistência humanitária na Líbia, onde chegou em um barco de pescadores em meio à guerra, na Somália, país no qual atuou em apoio às vítimas de mutilação genital, e na Grécia, porta de entrada na Europa dos refugiados dos conflitos no Oriente Médio e na África. Aos 43 anos, ela é a única brasileira no conselho internacional da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF). Mais uma mulher liderando postos importantes de pesquisa e ajuda humanitária pelo mundo.

Formada na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, com mestrado pelo Instituto de Saúde Pública e Tropical Suíço, de Basel (Suíça), Carolina sabe os impactos que a falta de coordenação diante de grandes crises de saúde pública pode provocar em seres humanos. Nesta entrevista, ela avalia o avanço do coronavírus, alertando para que a doença não alimente o preconceito e a xenofobia. Apesar da preocupação, a profissional está otimista em relação à união de esforços globais para conter a doença.

“É preciso juntar forças globalmente contra o coronavírus. A China está fazendo ensaios clínicos com pequenos grupos de pessoas. Já estão testando utilizar antivirais e até antimaláricos para tratar esse vírus. Quando a gente está frente a algo que não conhece, fica assustado. Mas há lições que podemos aprender: quando há algo com essa dimensão, na qual diferentes grupos, setor privado, países, OMS, laboratórios colocam-se na mesma mesa para buscar uma solução, conseguimos uma resposta bem mais acelerada”, destacou.

A médica ainda salientou que o momento serve como um alerta para mudanças de práticas tanto da população quanto dos governantes, principalmente, no que diz respeito a investimentos na saúde.

“As epidemias agudas nos dão uma oportunidade de se redesenhar o modelo global de investimento em saúde, para que possamos ter a certeza de que o que rege os investimentos ou a atenção não é onde essas doenças ocorrem, mas sim as necessidades das pessoas”, frisou.

Leia a íntegra da entrevista:

Como médica especialista em assistência humanitária, tendo trabalhado em meio a guerras e catástrofes, como a senhora avalia a pandemia do coronavírus e a reação dos governos?

A gente tem seguido muito de perto a situação. Estamos conversando com autoridades, OMS, com autoridades na China, vendo se há algo que a gente possa fazer para atuar no sistema de vigilância ou para doação de materiais não perecíveis, para apoiar no combate à epidemia. O Médicos Sem Fronteiras (MSF) tem grande presença na Itália. As medidas para evitar o contágio são simples, mas complexas. Porque é uma doença que tem uma alta taxa de contágio, existe grande risco mesmo em pessoas assintomáticas, e hoje, claro, as fronteiras são muito permeáveis no mundo todo. A organização tem tentado monitorar ao máximo, passando informações a nossas equipes que estão em mais de 70 países e recebendo informações em tempo real sobre medidas de proteção, como pode-se lidar com casos suspeitos, e, principalmente, tentando fazer com que toda essa discussão e enorme atenção da mídia não tirem do foco também o nosso objetivo maior que é prestar atenção a outros pacientes, que estão morrendo de sarampo, que sofrem com a situação da Síria, que escalona e se deteriora a cada dia, com mais de 1 milhão de pessoas deslocadas apenas internamente.

Vocês têm experiência em combate a epidemias, como o ebola e o sarampo na África. O que mais pode ser feito, especialmente com relação a pessoas mais vulneráveis?
Estamos tentando fazer com que nossos centros estejam bem equipados, com pessoas preparadas para receberem o potencial aumento do fluxo de pacientes com infecção do coronavírus, mas ao mesmo tempo fazer com que esse alarme não tire o foco do trabalho. A gente está lidando com questões de vida e morte. Temos uma posição privilegiada ao saber lidar com epidemias e uma capacidade de resposta grande. O nosso papel no momento talvez seja como multiplicador de capacidade de respostas, fazendo treinamentos. Estamos analisando isso, sem tentar substituir governos que tenham capacidade de resposta.

A senhora acha que a atenção que está sendo dada ao coronavírus está adequada à emergência?

É um vírus que a gente está conhecendo agora, quase como se fosse uma pessoa que está chegando ao nosso círculo. A taxa de contágio é extremamente elevada. A letalidade é razoável. A combinação desses dois fatores, propagação rápida com taxa de letalidade que não é baixa, preocupa. O mundo está preocupado. A OMS lançou esse anúncio de pandemia. Que bom. Isso significa que os diferentes atores ao redor do mundo agora têm um alicerce em comum para trabalhar, juntar forças: alguns desenvolvendo vacinas, outros fazendo testes… E é preciso juntar forças globalmente contra o coronavírus. A China está fazendo ensaios clínicos com pequenos grupos de pessoas. Já estão testando utilizar antivirais e até antimaláricos para tratar esse vírus. Quando a gente está frente a algo que não conhece, fica assustado. Mas há lições que podemos aprender: quando há algo com essa dimensão, na qual diferentes grupos, setor privado, países, OMS, laboratórios colocam-se na mesma mesa para buscar uma solução, conseguimos uma resposta bem mais acelerada. O avanço que já houve para o desenvolvimento de uma vacina, em semanas, é inspirador. Geralmente, isso demora anos.

Se olharmos epidemias do passado, como a gripe espanhola, podemos ficar mais otimistas tanto com relação aos avanços da ciência quando dos organismos multilaterais? A governança global está melhor preparada?

Existe uma grande lição aí, tentando comparar com doenças negligenciadas ou com o ebola, que têm um padrão de estudo clínico ou de vacinas elevado: as exigências de tempo para você atingir os objetivos são muito altas, mas, em uma crise como a atual, vê-se que podem ser flexibilizadas. Quando existe algo que atrai a atenção, existe toda uma movimentação para que os tempos sejam acelerados. Talvez a gente não precise um corte de “x” mil pacientes, mas bem menos do que isso nos testes. Talvez a gente possa aceitar os resultados aproximados, flexibilizando as exigências. Se a governança mundial está boa ou não, só o tempo irá mostrar. Mas uma coisa já é clara: há algo a aprender aí. Gostaria muito de ver algo assim também para doenças que afetam pessoas esquecidas pelo mundo. No caso da vacina do ebola, a gente teve de esperar muito, mesmo sendo a segunda maior epidemia do mundo, que está chegando ao fim no Congo depois de mais de 2 mil mortes. A gente tinha uma vacina potencial para o ebola desde a década de 1990, mas, por falta de incentivo, não levamos adiante até que se declarasse uma epidemia com essa dimensão.

No caso do ebola, a reação da OMS foi tardia. Diante do coronavírus, o Ocidente só acordou para a doença quando ela chegou à Europa. A senhora percebe diferença com relação a doenças na África?

O MSF está bem posicionado como organização porque a nossa zona de trabalho está justamente nos locais onde há menos investimento. É difícil afirmar, mas acho que sim: há uma valorização diferenciada ao se medir o peso ou o impacto em uma região e outra. Se a gente olhar os grandes relatórios de instituições que demonstram quanto investimento é feito para cada doença, infelizmente a gente vai ver que doenças que são confinadas a grupos isolados, apesar de serem números importantes, atraem pouco interesse mercadológico. São percebidas como doenças pouco rentáveis. Todas essas situações de epidemias agudas nos dão uma grande oportunidade de se redesenhar o modelo de investimento em saúde, a coordenação entre os diferentes atores para que possamos ter a certeza de que o que rege os investimentos ou a atenção não é onde essas doenças ocorrem, mas sim as necessidades das pessoas.

Doenças que não chamam atenção ou não têm grande impacto midiático não mobilizam o desenvolvimento de vacinas?

O próprio nome “doenças negligenciadas” já é uma aceitação de como as grandes instituições e os poderes privado e público as tratam. Não são as doenças que são negligenciadas; são as pessoas. Há doenças que, apesar de afetarem um número importante de pessoas, entre 1 bilhão e 2 bilhões, mais do que um sexto da população mundial, são negligenciadas. Não são doenças raras, com poucos números. São doenças que afetam pessoas em diferentes partes do mundo, de todos os continentes, na sua maioria pobres, com pouco acesso à saúde, vítimas de conflitos, de deslocamento forçado. Há muito pouco investimento em pesquisa para medicamentos e ferramentas de saúde para hanseníase, leishmaniose, esquistossomose e doença de Chagas, por exemplo.

São pouco lucrativas do ponto de vista da indústria farmacêutica?
Essas doenças atraem  pouco investimento porque são vistas como doenças não lucrativas do ponto de vista mercadológico. Do final da década de 1970 ao início da de 2000, menos de 1% de todos os medicamentos registrados no mundo era para essas doenças que citei e mais a malária. Ou seja, é um desequilíbrio fatal. No momento em que a gente sequencia o genoma, consegue fazer tantas pesquisas tão inspiradoras, é importante que nos organizemos para mudar isso.

A senhora comenta que questões de saúde muitas vezes servem para justificar medidas restritivas, de controle migratório. A saúde passa a ser vista como um problema de segurança?

A gente vê isso ser usado como forma de valorizar diferentes grupos ou justificar retaliações, restrições e medidas coercivas. O barco do MSF, o Ocean Viking, que presta atenção e salvamento às vítimas que tentam cruzar o Mediterrâneo, tinha entrado em quarentena na Sicília (após o desembarque de 276 pessoas resgatadas no mar nos dias anteriores). Você pode pensar: há risco. Mas quantos outros barcos passam ali? Instrumentaliza-se isso para criminalizar essas pessoas. Sempre, ao longo da história da saúde pública, isso se repetiu diante de casos de epidemias agudas. Pessoas com tuberculose eram totalmente isoladas. Temos de ter o cuidado de olhar para a história para não cometer os mesmos erros. Com relação ao coronavírus, a gente vai aprendendo ao longo do desenrolar da própria epidemia. Temos de ter cuidado para não abordar diferentes grupos de forma diferente: “Podemos receber essas pessoas, aquelas não; a gente não quer esse grupo aqui”, “vamos aproveitar para tomar medidas mais drásticas evitando que cheguem perto de nós”. A saúde não pode ser instrumentalizada como forma de potencializar preconceitos, vulnerabilidades e exclusões.

Nos últimos tempos, doenças que estavam erradicadas, como o sarampo, reapareceram. Como a senhora avalia os movimentos antivacina e a ideologização do tema?

Extremamente preocupante. Se há uma ferramenta que no último século mudou a mortalidade no mundo foram as vacinas. No início de 1900 e ao longo das décadas, havia grande quantidade de casos de sarampo. Isso decresceu de maneira superimportante. Doenças como a poliomielite, hoje, pouquíssimos países ainda a têm. É uma demonstração do sucesso da vacinação. E agora… Só em 2019, mais de 6 mil crianças morreram no Congo por complicações do sarampo. Mais de 300 mil casos foram reportados no ano passado nessa região. No Brasil, esse é um tópico de atenção.

Como a senhora vê o movimento antivacina no Brasil?

Vejo campanhas, anúncios, um esforço do Ministério da Saúde diante de qualquer ação que venha a questionar a eficácia da vacina. Sou sempre a favor de usar as histórias das pessoas. Lembro que, quando eu era pequena, via pessoas na família. Lembro de uma prima que havia tido pólio quando criança. Era supertriste ver aquela pessoa com uma deficiência física significativa. É importante que a gente tente ter relatos dessas pessoas, porque, se não entendemos a consequência de uma coisa, fica mais fácil cair em um discurso que não é baseado em evidência científica. Existe algo chamado vacina, que é relativamente fácil de se fazer uso no Brasil. Não estou falando de contextos complicadíssimos como aqueles em que o MSF atua. No Brasil, a gente tem de ter um cuidado especial com relação à questão migratória, de fluxo de pessoas chegando da Venezuela. Ter cuidado para que não se instrumentalize isso, usando a questão para reforçar discursos xenófobos, preconceituosos, “essas pessoas estão trazendo doenças”. Trabalhei em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. Para a gente chegar a algumas aldeias, tinha de ficar de dois a três dias em uma canoa. E a gente conseguia vacinar as pessoas. Ao invés de cair na armadilha desse discurso, de fechar fronteiras, devemos pensar como a gente pode colocar em prática anos de experiência, toda uma expertise de pessoas extremamente comprometidas no Brasil, nos ministérios, nas ONGs e entidades que trabalham com saúde pública como instrumentos de detenção e controle da emergência dessas doenças.

Trabalhar com ajuda humanitária, em regiões de conflito e catástrofe sempre foi um sonho seu?

Sou médica, natural de Niterói (RJ), estudei graduação na Universidade Federal Fluminense (UFF), sempre com um olhar para assistência humanitária. Eu fazia Engenharia Química. Meu pai é jornalista. Um dia, estava em casa e meu pai chegou com uma revista Marie Claire na qual havia uma entrevista com uma médica e uma enfermeira de MSF. Na época, não tinha ninguém no Brasil do MSF. Tive aquele chamado: “Nossa, quero fazer isso na vida”. Aquilo ditou muito como foi minha trajetória de vida. Decidi que ia fazer vestibular para Medicina e entrei na faculdade com esse foco. Queria fazer medicina humanitária, ser instrumento para levar ajuda, atenção médica às pessoas excluídas do mundo. Onde houvesse necessidade, eu queria atuar.

E como chegou ao MSF?

Me formei no Brasil, trabalhei em Santa Catarina como médica de família, sempre optei em trabalhar com atenção primária ou em locais onde não havia muitos recursos. Depois, fui para a Amazônia, onde fiquei quase cinco anos trabalhando com indígenas na fronteira com a Colômbia. Foi uma grande escola de vida: tratei malária, fiz procedimentos cirúrgicos sem muita estrutura. Vejo como uma “pós-graduação em medicina humana”. Aprendi muito com as pessoas do lugar, tanto indígenas quanto profissionais de saúde que me mostraram que, lá, a doença tinha outra explicação, outra interpretação. Consegui uma bolsa, fui fazer mestrado fora. Estudei no Instituto Tropical Suíço, em Basel, depois na Bélgica, um pouco de gestão de projetos. Depois, entrei para o MSF. Para mim, era importante estar muito bem preparada. Queria estar armada com as melhores ferramentas possíveis do entendimento médico, humanitário. Quando entrei no MSF, em 2007, fiz minha primeira missão em um contexto extremamente difícil, a Somália. Então, tudo fez sentido.

Como é o seu dia a dia? Ainda vai para o front ou é um trabalho mais de coordenação?
Tento morar no Rio (risos). É um trabalho que inclui muitas viagens. Estive na Grécia, visitando nossos projetos com refugiados lá. Durante quatro anos, fui diretora médica de MSF no Brasil, depois membro do conselho do MSF no Brasil e, desde o ano passado, no conselho internacional. Para mim, é uma honra, pensando naquela moça novinha que sonhou fazer parte dessa organização. Foi a primeira vez que alguém do chamado sul global foi eleito. É uma honra ser um pouco porta-voz do Brasil e da nossa região. A gente ajuda na tomada de decisões, nas reflexões políticas, nas escolhas do MSF, mas vejo o conselho internacional, sobretudo, como o órgão para o qual o MSF presta contas. E, sim, felizmente, esse trabalho inclui idas ao front. Agora, estive na Grécia, vou voltar para lá mês no que vem e vou ficar um tempo na ilha de Lesbos. E, provavelmente no meio do ano, devo ir para algum projeto, talvez em algum país da África, no Sahel, que também é um contexto bastante complexo. É uma posição que sempre vai estimular que a gente esteja no front, porque nos ajuda a ter legitimidade no que a gente decide, para estar sempre em contato com as pessoas que fazem parte da organização, do médico que está no terreno. Entender a perspectiva daquele paciente. Hoje, a gente passa por um momento de extrema complexidade na ajuda humanitária, com, inclusive, a criminalização da ajuda humanitária. A gente vê organizações sendo expulsas de alguns países, com dificuldade de entrar em alguns contextos.

Em que casos a senhora observa isso?

Na região do Sahel, no deserto africano. A gente consegue, ainda, porque temos um grande trunfo que é ser uma organização neutra e imparcial. Nossos fundos não vêm de governos, de grandes instituições que são malvistas ou de forma suspeitosa por algum dos lados de uma situação de conflito. Não faz muito tempo, uma organização francesa teve de suspender suas atividades no Níger sob alegação de que estava prestando serviço a grupos terroristas. Você certamente acompanhou, nos últimos anos, estruturas médicas nossas sendo bombardeadas por grupos distintos.

Até a Segunda Guerra Mundial, hospitais, médicos, ambulâncias eram quase intocáveis. Por que isso mudou?

Existe hoje o aumento da intolerância a diferentes grupos, que foram responsáveis direta ou indiretamente por situações vistas pelos olhos do mundo como terrorismo. Hoje se vê, do ponto de vista das grandes instituições do Ocidente, que existe uma definição mais clara de um perfil daqueles grupos que causam medo: associados a ações mais extremas. Do outro lado, há também grupos vistos como mais extremos que acham que ONGs e instituições que estão nesse contexto para prestar atenção médico-humanitária são instrumentalizadas pelo grande poder ocidental. E isso coloca as organizações entre a cruz e a espada, em uma situação bastante exposta e vulnerável.

Com informações do jornal Zero Hora