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Ginecologista coordena projeto que reduziu gravidez de jovens em SP sem a adoção da “abstinência”

Foto: Arthur Passos/Prefeitura de Cuiabá

A ginecologista Albertina Duarte Takiuti já viu uma garota de 11 anos dar à luz em um vaso sanitário de um posto de saúde — porque não sabia que estava grávida — e pegou o bebê antes que ele caísse na água. Costuma receber mães de adolescentes grávidas que negam a gestação alegando que a filha é virgem. Nas rodas de conversa com adolescentes em que participa, faz os meninos deitarem no chão para simular um parto, como se eles fossem as gestantes. São 40 anos de trabalho na área da sexualidade infantojuvenil no sistema público de saúde do estado de São Paulo, com crianças e jovens de 10 a 19 anos. E, durante esse tempo, uma coleção de histórias, pesquisas e resultados positivos, desses que fazem o peito se estufar automaticamente antes de serem anunciados: à frente do programa Saúde do Adolescente, da secretaria estadual de Saúde, Albertina viu as taxas de gravidez na adolescência caírem à metade da média mundial e a um terço da média brasileira.

Em São Paulo, são 22 filhos de mães adolescentes a cada 1.000 nascimentos. No mundo, são 44. No Brasil, 62. Os números caíram 54% em 20 anos, segundo dados do governo. Qual a fórmula? “Conversa. Deixar eles falarem o que sentem, o que sabem. Só assim conseguimos fazer com que se previnam”, diz.

Em tempos de programa para incentivar a abstinência sexual, Albertina diz se sentir em um déjà vu. “Nunca poderia imaginar, 40 anos depois, que estaria levantando essa bandeira de ‘vamos falar’. Lá atrás, tudo bem, dá para entender. Mas agora? Não querer falar sobre sexo?”.

Quer falar sobre sexo com seu filho? Então não fale sobre sexo

Sabe aquela cena constrangedora do pai ou da mãe falando para o filho ou a filha adolescente que eles precisam conversar sobre sexo? Pois então: evite. “Não fale como uma enciclopédia. O adolescente não vai se abrir de uma hora para outra, não vai falar se for desse jeito.”.

Como fazer então? “Comece estreitando o vínculo, perguntando sobre o cotidiano dele, não falando sobre contracepção. Garanta que ele saiba que você o ama, não seja censor nem juiz. Muitas vezes o adolescente quer contar: ‘Levei um fora, meu ficante ficou com outra’. Mas precisa sentir que há abertura”, diz. “Mesmo que ele não queira falar sobre nada, dê 51 abraços e beijos. Ele pode até tentar fugir: antes de chegar em 51, vai dar certo.”.

Em 1987, Albertina criou o primeiro ambulatório do Brasil voltado para ginecologia infantojuvenil no Hospital das Clínicas — que funciona até hoje. Antes disso, meninas e mulheres eram atendidas juntas, como se tivessem as mesmas questões. “E as adolescentes mentiam. Diziam: ‘Eu estou tendo relação, mas minha mãe não pode saber’.”

Ao relembrar a criação do ambulatório, afirma: “Foi um escândalo”, diverte-se. “Coloquei um ginecologista e um urologista atendendo no mesmo espaço. Havia grupos em que meninos se juntavam com as meninas. Foi polêmico. Mas deu certo e, a partir daí, a proposta de criar espaços de acolhimento ganhou corpo.”

Depois disso, Albertina criou as Casas, sigla para Centro de Atenção à Saúde do Adolescente, que atualmente conta com 28 unidades no estado. “Começamos mapeando as regiões mais vulneráveis para instalá-las. Votuporanga era uma delas. Hoje acabei de saber que a cidade tem a menor taxa do estado, com cerca de 8 casos de mães adolescentes para cada 1.000 nascimentos”, conta.

As Casas contam com médicos, enfermeiras, psicólogas e assistentes sociais para receber os jovens. No que diz respeito a sexo, a fórmula é — ou parece — bem simples: rodas de conversa. “É quando a gente deixa eles falarem e escuta. E aí, é um adolescente falando pra outro.” Funcionam em unidades autônomas ou dentro de Unidades Básicas de Saúde.

Albertina diz ser impressionante a quantidade de meninas que engravidam não porque não sabem usar os métodos contraceptivos — essa informação, ela garante, a maioria dos adolescentes têm —, mas porque têm medo de não agradar seus parceiros. “Por isso, trabalhar a prevenção significa trabalhar a autoestima dessas meninas. Quando sabem o que faz bem para elas, negam o que pode prejudicá-las.”.

Gravidez na adolescência: pais dos bebês “a-somem”

Em um país no qual ficam grávidas 550 mil meninas anualmente — no total, são 3 milhões de mulheres grávidas —, não é de se surpreender que a desigualdade de oportunidades entre homens e mulheres seja tão pungente.

“Se eu luto pela igualdade das mulheres, um dos caminhos da grande desigualdade econômica é a gravidez na adolescência”, afirma Albertina. “Quem engravida na adolescência está numa posição desigual em relação a oportunidades de trabalho, na questão de estudar. Se estiver na escola, ela sai da escola, abrevia os estudos, escolhe uma profissão mais ‘rápida’. A menina fica sozinha.”

A médica pede atenção a outros dois números: 60% das meninas que engravidam deixam a escola, e, em cerca de 80% dos casos, o pai da criança some — em 70% dos casos, quem cuida da criança é a avó materna. “Os meninos não assumem, eles a-somem.”

O fenômeno, diz a médica, é “democrático”. “Acontece em todas as classes sociais”, afirma. “Mas, nas mais privilegiadas, com menos incidência. Se comparamos Brasilândia [na zona norte de SP] e Vila Madalena [na zona oeste], os índices são diferentes: na Brasilândia é pelo menos dez vezes mais.”

Campanha pela abstinência sexual: voltamos no tempo?

“Parece que eu estou num déjà vu”, diz Albertina sobre a onda de condenação às discussões sobre sexualidade em sala de aula. “Quarenta anos depois, nunca pude imaginar que levantaria a bandeira: ‘Vamos falar’. Respeito todas as crenças e religiões, mas a média mundial diz que a vida sexual começa entre 14 e 16 anos.”

A questão central, acredita a médica, é outra. “Como o adolescente vai ter ferramentas para se prevenir?”, diz Albertina, reiterando que não adianta negar que jovens transam. “Todas as campanhas baseadas em ‘não’ não deram certo, foi um gasto grande de dinheiro”, afirma, referindo-se à campanha do Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos. “O adolescente é desafiador, a negação atua como fator estimulador nessa fase da vida.”

Sobre programa que estimula abstinência sexual: “Todas as campanhas baseadas em ‘não’, não deram certo. O adolescente é desafiador, a negação atua como fator estimulador nessa fase da vida” Imagem: Mariana Pekin/UOL

“No grupo familiar, respeito quem queira fazer abstinência ou sexo depois do casamento. Mas eu estou trabalhando com a maioria da população, e a maioria aponta que a primeira relação acontece entre 14 e 16 anos. Houve até uma queda nesses 40 anos, antes era 17”, diz.

“E estou discutindo dentro de evidências científicas. Me reuni nos Estados Unidos há algum tempo com pessoas que participaram de programas de abstinência. Eles me disseram: gastou-se milhões e não deu certo. O Brasil não precisa começar a testar coisas. São Paulo é um país, investiu na capacitação dos profissionais e tem esse resultado positivo.”

A própria experiência lhe dá argumentos para afirmar que, independentemente das crenças e classes, adolescentes transam e não vão parar de fazê-lo. “Atendi e atendo mães dizendo: ‘Mas na nossa igreja diz que não é para ter relação, e ela está grávida’. Temos que entender que o trabalho com políticas públicas é para milhões de pessoas.”

Em campanha, adolescentes viram YouTubers para falar de sexo

Albertina comemora o que considera uma das maiores realizações de sua carreira: conseguir unir as secretarias estaduais da Educação, da Justiça e Cidadania e da Saúde em uma campanha que vai alavancar ainda mais o programa que já está em execução há 20 anos.

Além de estimular a abertura de mais Casas, a campanha “Gravidez na Adolescência É Para a Vida Toda” vai criar um concurso com estudantes das escolas públicas estaduais, com idades entre 12 e 20 anos, que serão estimulados a criar e inscrever vídeos dentro do contexto da campanha. Nos vídeos, os adolescentes deverão falar sobre a importância e a necessidade de se prevenir a gravidez.

“Eles vão se inscrever e podem falar como se previnem. E vão falar uns para os outros. Pode ser que uma aluna chegue falando: ‘Minha irmã ficou grávida e se estrepou’. Adolescente não tem filtro, eles falam mesmo”, afirma a médica. “Estamos entrando no mundo deles, que é o da internet.”

A abrangência deve garantir o sucesso, diz a médica. “Esse concurso estará nas escolas. Nisso, uma professora que nunca quis falar do tema por medo vai se sentir autorizada. E vamos expandir as rodas de conversa, é isso que a gente quer que a escola faça. A vida sexual dos jovens começa quando eles são estudantes.”

“Sou apaixonada pelos adolescentes”

No caminho para a sua sala no Hospital das Clínicas, Albertina diz que é parada por vários pacientes querendo contar alguma coisa. “Já teve até filha de funcionária do hospital dizendo que queria conversar comigo porque começou a ter relação. Pediu que eu não contasse para a mãe. Falei que não contaria e ela me disse: ‘Lacrou’. Eles são muito engraçados.”

Adolescente, segundo ela, tem dúvidas peculiares. “Outro dia uma me disse: ‘Doutora, a senhora falou numa entrevista que a vagina tem de 8 a 11 cm. Acho que a minha tem 3. Eu sou defeituosa, ele tentou entrar e não passou’. Você vê? Elas não estão perguntando sobre método anticoncepcional, é outra vibe. É no clima deles.”

“Por isso eu não acredito em palestra: eles não vão ouvir, eles que precisam falar. Quando uma adolescente numa roda chega e diz ‘engravidei e foi pesado pra mim engravidar’, posso eu fazer cem palestras que não terão o mesmo impacto.”

Ouvir Albertina falar sobre a maneira como lida com os adolescentes e suas questões de sexualidade faz qualquer adulto se perguntar por que não teve uma mulher como ela em seu caminho quando jovem. A médica trata o tema de forma natural, leve e ao mesmo tempo com seriedade, mas sem julgamento. Lembra a psicóloga Jean da série “Sex Education”, da Netflix, uma terapeuta sexual que cai nas graças dos colegas do filho adolescente ao dar conselhos a eles na escola.

A admiração é recíproca: a paixão dela pelos jovens transparece em suas falas. “Eu amo, adoro trabalhar com eles. Me ensinam muito, todos os dias.” “Mas tem uma coisa que me deixa deixa nervosa: é o Brasil só estar à frente do Peru e do Suriname entre as taxas de gravidez na adolescência na América Latina. De resto, está atrás de todos.”

Fonte: Universa