Entre 2007 e 2017, houve 8.221 notificações de casos de violência contra mulheres indígenas no país — no último Censo (2010), elas eram 448 mil pessoas, ou metade da população indígena do Brasil, de 897 mil indivíduos.
Em um terço desses casos de violência, o agressor é uma pessoa próxima, como o ex ou atual companheiro. O espancamento e a ameaça são as principais formas de agressão e a residência é o local onde a maioria dos casos acontece, sendo as mulheres de 10 a 19 anos a maioria das vítimas. Os dados do Sinan foram compilados e divulgados Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão ligado ao Ministério da Saúde.
Uma marca na coxa direita é a cicatriz que Rosália (nome fictício), uma mulher indígena de 30 anos da etnia karajá, carrega após ter sido agredida pelo marido, com quem ficou casada durante dois anos. Eram frequentes as brigas que terminavam em chutes, pontapés, puxões de cabelo e xingamentos.
Moradora da Ilha do Bananal, localizada no estado do Tocantins e separada de Mato Grosso pelo rio Araguaia, Rosália está a muitos quilômetros de distância dos serviços que poderiam tê-la ajudado a sair do ciclo de violência.
Além dos motivos comuns que toda mulher que sofre violência enfrenta para denunciar a agressão, como medo, vergonha e falta de acolhimento, as mulheres indígenas ainda enfrentam a desinformação sobre seus direitos, barreiras do idioma e grandes distâncias para chegar até pontos de atendimento.
Rosália não denunciou o marido, mas terminou o relacionamento e recebeu apoio da família. “Ele queria saber o meu passado, sobre outros namorados e quando descobria alguma coisa me batia muito, de pancada, de porrada, já me furou com um garfo. Mas nunca denunciei porque ele dizia que se fosse preso, quando saísse, me mataria”, conta.
O caso de Rosália reflete os de outras mulheres indígenas vítimas de violência, cujos dados são agregados pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde.
Léia do Vale Rodrigues, indígena do povo wapichana que liderou as ações da Fundação Nacional do Índio (Funai) de 2008 a 2010 para levar informações sobre a Lei Maria da Penha às aldeias, explica que tamanha situação de vulnerabilidade deriva do escasso conhecimento da legislação, tanto por parte das mulheres como por parte dos seus agressores e da comunidades.
As distâncias agravam o quadro. “A gente denuncia, volta para a aldeia sem saber se medidas de proteção vão funcionar, e apanha mais, por isso que as mulheres têm medo”, conta Mariquinha Karajá, 59, que sofreu agressão do marido até que ele morresse.
“Ele me batia porque quando bebia criava coisas na cabeça dele de que eu o estava traindo. Ele não me machucava porque eu conseguia correr. Até com arma de fogo eu fui ameaçada. Foi assim a vida toda, até ele morrer.”
Mariquinha nunca o denunciou. A delegacia mais próxima da Ilha do Bananal, onde vive, fica no município de São Félix do Araguaia, em Mato Grosso — ou seja, em outro estado.
A denúncia costuma ser o último estágio para a resolução do conflito, pois a maioria das comunidades tenta resolver o problema internamente, segundo Telma Taurepang, da coordenação da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (Umiab). A partir da denúncia recebida, cabe à Funai (Fundação Nacional do Índio) acompanhar a entrada da Polícia Federal em territórios indígenas.
Segundo a delegada Ana Caroline Terra, de São Félix do Araguaia, o Ministério Público Federal do Tocantins promoveu uma audiência pública em outubro de 2019 com autoridades de Mato Grosso para discutir uma cooperação para um melhor atendimento à população indígena que vive na Ilha do Bananal. No entanto, o acordo ainda não foi formalizado.
O terceiro obstáculo é a barreira linguística, que também contribui para a desinformação. Mariquinha, por exemplo, não fala português fluente. Apesar da longa convivência com a sociedade não indígena, a etnia karajá conseguiu manter costumes tradicionais, como sua língua nativa.
De acordo com Censo IBGE 2010, no Brasil são faladas 274 línguas indígenas. Cerca de 17,5% da população indígena não fala a língua portuguesa.
Para o diálogo ser efetivo é necessário respeitar as especificidades de cada povo, seja com o uso de termos que se aproximam mais da realidade daquela comunidade seja com a evocação de contos que envolvem a mitologia de determinada etnia, explica Nara Baré, a primeira mulher a ser eleita para a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
O Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul traduziu a Lei Maria da Penha para as línguas guarani e terena e confeccionou cartilhas com informações sobre violência contra a mulher. Os exemplares são utilizados em eventos e distribuídos nas aldeias.
“Após escutá-las, constatamos que o que faltava era informação. Elas contaram que tinham vontade de denunciar, mas não sabiam como a Lei Maria da Penha funcionava. Como já tínhamos a cartilha em português, pensamos: então vamos traduzir”, afirma a defensora pública Thaís Dominato Silva Teixeira .
Os serviços de atendimento a mulheres vítimas de violência também precisam considerar a questão do idioma. Quando foi inaugurada em Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul, a Casa da Mulher Brasileira contava com duas tradutoras indígenas para as línguas guarani e terena, as duas maiores etnias no estado (o Brasil registra 305 etnias).
“É diferente você chegar lá e se deparar com uma parente sua, que pode conversar com você. Isso encoraja a mulher”, diz Silvana Terena, secretária de Políticas Públicas para a população indígena de Mato Grosso do Sul.
Mas em 2017, dois anos após a inauguração, os contratos não foram renovados e desde então o atendimento está sem tradução.
Criada em 2013 pela então presidente Dilma Rousseff, a Casa da Mulher Brasileira reúne serviços de atendimento a mulheres vítimas de violência. Deveria ser implementada em todos os 26 estados e o Distrito Federal até o fim de 2018, mas só chegou a sete: São Paulo, Brasília, Ceará, Paraná, Maranhão, Mato Grosso do Sul e Roraima.
A reportagem procurou o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, por meio de sua assessoria de imprensa, mas não foi atendida.
O Manual de Atuação em Casos de Feminicídio, recém-lançado pelo Conselho Nacional do Ministério Público, traz duas menções às mulheres indígenas em suas 38 páginas.
A única orientação que faz é a seguinte: “Quando a vítima for indígena, se for o caso, pedir o auxílio da Polícia Federal. Lembrar sempre que, em vários estados, os grupos indígenas vivem em situação de maior vulnerabilidade, sendo que as mulheres indígenas, por conta da barreira da língua e das questões culturais, têm maior dificuldade de acesso às autoridades para conseguirem sair do ciclo de violência”.
A forma como a Lei Maria da Penha pode ser aplicada dentro das aldeias tem sido tema presente nos encontros de mulheres indígenas. Foi um dos assuntos abordados durante o Encontro da Associação Indígenas Vale do Araguaia (Asiva), que ocorreu em novembro de 2019, na aldeia Fontoura, na Ilha do Bananal. O encontro reuniu cerca de cem mulheres vindas de diferentes aldeias. Homens também foram convidados e acolhidos nos debates.
De acordo com Eliane Karajá, responsável pela coordenação do encontro, conversar sobre o assunto, explicar a Lei Maria da Penha e envolver também os homens na discussão é uma forma de levar as informações sobre direitos e deveres para dentro das aldeias.
De 2008 a 2010, Léia do Vale Rodrigues coordenou as ações da Funai nesse front, tendo em vista direitos especiais dos povos indígenas garantidos tanto na Constituição Federal quanto em instrumentos internacionais. Em dois anos, foram 13 seminários e 452 mulheres envolvidas.
Segundo Nara Baré, falar sobre a violência ainda é um tabu, seja para as indígenas que vivem nas aldeias, seja para as de recente contato ou até mesmo para as que estão em contexto urbanos.
“É um momento muito íntimo e pode não ser confortável para todas elas. Temos muito cuidado em lidar com essas temáticas, com uma metodologia que elas possam entender e se abrir conosco para que a gente ajude sem ferir a individualidade e a política interna daquela comunidade”, explica.
Cristiane Julião, do povo pankararu, representante de Pernambuco no programa Voz das Mulheres Indígena da Organização das Nações Unidas (ONU), afirma que romper tais barreiras é um processo e que a dificuldade pode estar relacionada à naturalização de algumas práticas e pela maneira como a mulher indígena foi, e ainda é percebida e tratada.
“Discutir o assunto é importante para desconstruir a banalização das violências contra as indígenas e também para que reconheçamos quais são as nossas tradições políticas, sociais e jurídicas próprias”, afirma Cristiane.
Ao falar do tema, é comum ouvir o argumento de que as agressões à mulher “faz parte da cultura indígena”. Mas Telma Taurepang, da coordenação da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (Umiab), refuta essa ideia.
“Cultural é a mulher estar à frente no roçado, é produzir a agricultura familiar, e não apanhar ou sofrer violências psicológicas”, diz. Telma conta que o tema é frequentemente levado para as reuniões e que a meta é mostrar para essas mulheres que elas têm voz e que podem sair dessa situação.
A questão passa também pelos papéis desempenhados pela mulher dentro da comunidade. De acordo com Sandra Kuady, recém-eleita a primeira mulher cacique da aldeia São Domingos, a maior comunidade karajá, muitos homens ainda pensam que o papel da mulher é o de cozinhar, o de cuidar da casa, dos filhos e não conseguem lidar com a realidade de que nem todas desejam desempenhar tais funções.
“Temos sabedoria suficiente para administrar e ajudar o nosso povo, mas muitas mulheres sofrem com isso. E também tem o problema da bebida, que é uma triste realidade e afeta demais as famílias.”
Dentro do Movimento das Mulheres Indígenas do Xingu, a dificuldade é romper a barreira com os homens, segundo a líder Watatakalu Yawalapiti.
“Muito difícil fazer com que as pessoas entendam que quando a gente fala de violência, não estamos falando de brigar entre nós, mas que queremos conversar sobre o problema”, conta.
Criar mecanismos próprios para solucionar os casos de violência doméstica é o que um grupo de homens, liderado pelo cacique Izael Morales, tem feito na Reserva Indígena de Dourados, em Mato Grosso do Sul.
Juntos, eles ajudam as mulheres a romperem o silêncio e incentivam a denúncia dos agressores. Izael conta que, na maioria das vezes, quem busca o grupo não é a vítima mas uma amiga ou parente. A partir daí, eles vão até a casa da mulher que está sofrendo a violência e iniciam um diálogo com ela e com o agressor, que geralmente é o marido.
“A maioria dos casos é por uso de bebida e, se precisar, tiramos esse homem de dentro da casa para proteger a mulher. Nós explicamos para a mulher sobre a Lei Maria da Penha, da importância de denunciar, das medidas protetivas e nós mesmos a levamos até a delegacia.”
Com informações da Revista AzMina em parceria com o Volt Data Lab