Acompanhe

Episódio 4: Lugar de criança é na escola, por Wanda Engel

Foto: ITV

Desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em que se ratificava o direito inalienável à educação, firmou-se o slogan “Lugar de Criança é na Escola”. Não seria admissível crianças envolvidas no trabalho, especialmente em ocupações que ameaçassem sua integridade física ou psicológica.

Assim, se na primeira infância, os grandes desafios eram os de manter as crianças vivas, saudáveis e com suas potencialidades plenamente desenvolvidas, no caso de crianças e adolescentes, além destes, tínhamos de garantir o ingresso, a permanência e o bom desempenho na escola. Isto incluía dizer não ao trabalho infantil!

Sem deixar de focalizar a família, especialmente a mãe, programas nesta fase deveriam ter, como principal lócus de atuação, a escola.

Devo confessar que não se chegou a conceber uma política realmente orgânica para crianças e adolescentes pobres. O que fizemos foi consolidar e expandir os programas já existentes.

Nesta perspectiva, a grande estrela era o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), que chegou a beneficiar, até 2002, mais de 810 mil crianças.

O PETI, como era conhecido, tinha como foco as crianças envolvidas nas piores formas de trabalho, tendo sido o primeiro programa de Transferência Condicionada de Renda (TCR) em nível federal.

Sua implantação em 1996, sob a liderança de Lucia Vania Abraão, então secretária da SAS, esteve ligada a reportagens realmente chocantes, sobre a atuação de crianças na produção de carvão vegetal no Centro Oeste.

Inicialmente, foram priorizadas as formas degradantes de trabalho infantil em áreas rurais, como os realizados em carvoarias, no corte de cana de açúcar, na lavoura e beneficiamento do fumo e do sisal, na fabricação de farinha, no manuseio de agrotóxicos ou na cata de mariscos. Daí a grande concentração do PETI no Nordeste.

Assim que tomei posse, em 1999, em função de uma crise econômica, foi proposto um corte no orçamento da SEAS, que atingia também os recursos destinados ao PETI. Resolvi ir ao Nordeste para, junto aos governos estaduais e municipais, e ao setor privado, identificar formas alternativas de financiamento que evitassem a diminuição do atendimento. Ainda no avião, fui apresentada ao presidente da Federação dos Municípios da região. Ele quis logo saber a razão de minha viagem. Quando apresentei o problema, na busca de um parceiro para identificar possíveis soluções, ele reagiu de forma bem contundente, dizendo: Quando fui apresentado à senhora, disse que tinha tido muito prazer em conhecê-la, mas retiro a afirmação. Não tenho o menor prazer de conhecer alguém que pretende diminuir o atendimento do PETI. Este programa é sagrado aqui no Nordeste! Ninguém pode mexer com ele não! Se esta é sua intenção, pode voltar!!!! Felizmente o orçamento foi recomposto!

Assim que o orçamento permitiu, houve a expansão para trabalhos típicos de áreas urbanas. Dentre as piores formas de trabalho infantil nas cidades, incluíam-se a exploração sexual, o trabalho na construção civil, em borracharias, na gestão do lixo, no comércio de rua, no tráfico de drogas e em serviços domésticos.

Como se pode perceber, muitas destas modalidades estavam no âmbito do mercado ilegal, dependendo, para seu enfrentamento, de denúncias e de um trabalho interdisciplinar envolvendo, além da assistência e da educação, a justiça e a saúde.

Em outros casos, como o do comércio de rua ou do trabalho doméstico, havia uma certa condescendência da sociedade, por considerá-los “aceitáveis”. Por outro lado, havia ainda a crença de que o trabalho infantil constituía importante estratégia de “formação do caráter”, sendo, portanto, não somente admissível, como desejável.

Este tema me lembra o último filme de Indiana Jones, quando aparece um rapaz, filho de uma ex-namorada do herói, dizendo que tinha abandonado a escola, pois preferia aprender com a própria vida. Indiana aplaude a escolha. Mais ao final do filme, ao descobrir que o rapaz é seu filho, “ordena” que retorne imediatamente à escola. Quando o filho argumenta que ele havia concordado com a opção, recebe como resposta: Mas eu não sabia quem você era! Filho meu TEM de estar na escola!!!

Neste cenário, foram muito importantes as campanhas de esclarecimento sobre os danos do trabalho infantil para o desenvolvimento das crianças, especialmente no âmbito da saúde física e mental e da educação escolar. A partir daí eram incentivadas as denúncias e oferecidos canais de delação.

Como se tratava de crianças oriundas de famílias na extrema pobreza, era fundamental que se oferecesse uma bolsa – a Bolsa Cidadã – para dar conta da chamada “renda sacrificada”, consequente da saída do trabalho.

O valor inicial da bolsa havia sido calculado em função do rendimento médio obtido no campo. Com a expansão para as atividades típicas das áreas urbanas, fez-se necessária a definição de um valor diferenciado, o que gerou muita confusão. Interessadas em aumentar o repasse financeiro, pequenas cidades, tipicamente rurais, reivindicavam a condição de “área urbana”. Um rolo só!

Com o PETI, além de serem retiradas imediatamente do trabalho, as crianças deveriam ter a matrícula garantida em qualquer época do ano e frequentar a escola. Deveriam também participar de uma jornada ampliada, de forma a compensar as carências de aprendizagem e melhorar o desempenho escolar. Era uma “escola de horário integral” para as crianças retiradas do trabalho precoce.

Na jornada ampliada desenvolviam-se ações de apoio à escolaridade e atividades de esporte, cultura e lazer. Os resultados deste trabalho eram apresentados em eventos, reunindo as escolas beneficiadas. Eram verdadeiras cerimônias de congraçamento e de troca de experiências, que ajudavam a formar uma Rede de Escolas do PETI.

Por outro lado, as famílias, além de receber recursos da Bolsa Cidadã, tinham acesso à capacitação laboral e à programas de geração de renda. Propunha-se, também, que fosse oferecida, aos egressos do PETI, a oportunidade de inserção em programas de capacitação, geração de renda ou de inserção no programa dos Agentes Jovens, do qual falaremos no próximo episódio.

O interessante neste programa é que o público alvo era claramente definido: crianças entre 7 a 15 anos, envolvidas nas piores formas de trabalho infantil. Elas eram identificadas por um Fórum de Combate ao Trabalho Infantil, formado por representantes da sociedade civil. Esperava-se, portanto, que seu foco fosse “próximo à perfeição”. A realidade nem sempre confirmava esta expectativa.

Sempre que participava de eventos organizados com estas crianças, pedia para que levantassem o braço aquelas que trabalhavam antes de participarem do programa e… muitas não o faziam. Enfim, todas as normas e o controle social existentes não impediam que crianças não trabalhadoras fossem incluídas no programa.

A preocupação com o foco é muito importante, pois pode-se chegar quantitativamente ao universo previsto, sem que se tenha atingido todos os que realmente necessitavam do programa. Isto ocorre quando é incluído um outro tipo de público, atraído pelos ganhos da iniciativa, deixando de fora parte substantiva do grupo-alvo.

Outro dado interessante é que o PETI era uma iniciativa federal, mas como ainda não se utilizava o sistema bancário para a transferência de renda diretamente à família, os recursos iam para as prefeituras, que os repassavam para as mães. Por isto, era percebido como sendo um “programa do prefeito”. Ele nunca foi visto como uma iniciativa do governo nacional, ao contrário do Bolsa Família.

Analisando o PETI, vemos que era um programa concebido de forma realmente orgânica. Ele visava dar conta dos múltiplos fatores envolvidos na questão de crianças atuando em trabalhos degradantes.

Ele incluía o envolvimento da sociedade com o problema, por meio dos Fóruns de Combate ao Trabalho Infantil; a retirada imediata das crianças deste tipo de atividade laboral; a inserção escolar em qualquer período do ano letivo; a oferta de uma complementação educacional para melhorar o desempenho escolar; a compensação da “renda sacrificada”, com a oferta de uma bolsa às mães; o acesso à geração de renda para os membros jovens e adultos da família, para melhorar suas condições econômicas; e a possibilidade de opções para o “day after”, com a inserção em programas de introdução ao mundo do trabalho. Mais completo, impossível!

O impacto o PETI foi tão expressivo, que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) o classificou como um “case de sucesso internacional”.

Este é um exemplo bem-sucedido de política pública que serve de inspiração para muitos países pobres de todo o mundo.

Dada a importância da juventude no processo de reprodução da pobreza, este será o tema central do Episódio 5, com destaque para a proposta do Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano. A ideia geradora desta iniciativa é uma visão do jovem pobre, não como um problema, mas como parte importante da solução. Não perca!

* Wanda Engel é diretora do Instituto Synergos no Brasil e foi ministra da Assistência Social.

**O artigo foi publicado no blog de Wanda Engel