Opinião

Por onde começar o combate à pobreza?, por Wanda Engel

Foto: Wanda Engel /Divulgação

As notícias são bem desanimadoras. Entre 2015 e 2018, com a crise financeira, houve um retorno de 7,4 milhões à situação de pobreza, sendo 4,5 milhões à indigência (renda mensal de R$ 145). Escancara-se também a desigualdade com a renda do 1% mais rico crescendo 9,4% e dos 5% mais pobres diminuindo 40%.

Assim, num contexto de pobreza, a carência da renda soma-se à falta de acesso a uma educação de qualidade, a serviços de saúde, à Justiça, à cultura, a condições habitacionais mínimas, incluindo água e esgoto. Tudo isto gerando, no campo subjetivo, uma tendência ao fatalismo e ao imediatismo, caracterizado pela “vida severina”, sem futuro e sem projeto. Quanto à desigualdade, vivemos uma enorme dissonância entre a ideia de uma sociedade igualitária, na qual todos podem ascender, dependendo unicamente de seus méritos e esforços, e a abissal desigualdade do mundo real.

Também aí aparecem consequências subjetivas, como a baixa estima ou o sentimento de injustiça, o que pode gerar a quebra do contrato social e a violência. O caldeirão parece estar prestes a explodir! Mas, fazer o quê? Em primeiro lugar, é preciso ter consciência da gravidade, da complexidade e da urgência de se enfrentar este problema, que, por sinal, afeta todos, e somente os pobres. Neste caso, não cabem soluções setoriais e reducionistas, sendo necessário desenvolver uma visão sistêmica da dinâmica de produção e reprodução da pobreza e da desigualdade. Mas, para que nossa energia não se perca no intrincado mapa das relações causais, é importante identificar os chamados “pontos de alavancagem”. As políticas sociais brasileiras vêm buscando atuar nestes pontos: transferências condicionadas, associadas ao desenvolvimento familiar, à inclusão produtiva e ao desenvolvimento local, como ocorreu no Projeto Alvorada. Estas medidas foram responsáveis pela saída de milhões de pessoas da situação de pobreza e pela diminuição da desigualdade, tendências que, infelizmente, não se mostraram sustentáveis numa situação de crise.

A pergunta de um milhão de dólares é: qual seria o “ponto de alavancagem” capaz de dar maior sustentabilidade à superação da pobreza e à diminuição da desigualdade? Primeira dica: estudos mostram que o principal fator responsável pela produção e reprodução da pobreza, em uma sociedade do conhecimento, é a educação. Não apenas o nível da escolaridade, mas a qualidade da aprendizagem. Neste sentido, em encontro promovido pelo Todos pela Educação, Jaime Saavedra, responsável global pela área de educação do Banco Mundial, defendeu a importância da alfabetização plena (capacidade de ler e interpretar um texto simples) até os 10 anos. As crianças deveriam ser alfabetizadas até os 8 anos e ter esta habilidade consolidada aos 10. Segundo ele, após essa idade, torna-se cada vez mais difícil desenvolver tal competência, que está na base do processo de aprendizagem de todas as outras áreas.

A percentagem de crianças com 10 anos que não desenvolveram esta habilidade definiria a chamada “taxa de pobreza de aprendizagem”. O Brasil, como um todo, aparece com uma taxa de 48%, enquanto a média dos países pobres e médios chega a 53%. Entretanto, mais uma vez as médias escondem a desigualdade. Enquanto em São Paulo a pobreza de aprendizagem atinge a taxa de 27%, no Maranhão é de 70%. Como a pobreza de aprendizagem é um preditor, não apenas da reprodução da pobreza e da desigualdade, como do desenvolvimento econômico e social, creio firmemente que sua diminuição possa se constituir em um efetivo ponto de alavancagem.

Para tanto, é preciso que não esqueçamos que um problema complexo exige uma abordagem intersetorial e estratégias colaborativas, envolvendo governos de diferentes níveis e áreas (educação, saúde, assistência, cultura, esporte), empresariado, organizações da sociedade civil, universidades e mídia em torno de uma agenda comum. Neste caso, nossa agenda comum poderia ser a garantia da alfabetização plena de nossas crianças até os 10 anos. Com esta agenda, todos poderiam contribuir, a despeito das posições econômicas, sociais ou ideológicas. Será que ainda é possível sonhar com colaboração em um contexto tão polarizado? A educação poderia realizar este milagre? Eu acredito!

*Wanda Engel é diretora do Instituto Synergos no Brasil e foi ministra da Assistência Social.

**O artigo foi publicado no jornal O Globo em 27/11/2019