Opinião

De onde viemos e para onde vamos? Reformismo e democracia, por Aspásia Camargo

Presidente do ITV do Rio de Janeiro, Aspásia Camargo.

É salutar que os partidos políticos façam, de tempos em tempos, uma revisão de suas práticas e doutrinas, procurando atualizar ou mudar os seus programas, corrigindo seus rumos e respondendo a novos desafios. O momento internacional assim o exige, tendo em vista  o novo paradigma de desenvolvimento, no bojo de uma  revolução tecnológica que demarca a 4a revolução industrial. Por sua natureza avassaladora, acelerada e imprevista, esse processo vem sendo  identificado como disrupção criativa.

O contexto induz, portanto, a discussões doutrinárias que nos apontem para onde vamos, e que escolhas devemos fazer diante dessas transformações que paralisam o Brasil mas sacodem o mundo. Lembremos apenas que nossos pontos de referência estão, no mínimo, desatualizados pois a sociedade industrial que foi a fonte inspiradora de nosso desenvolvimentismo, há muito ficou para trás e nós continuamos prisioneiros de um modelo que não mais existe.

Da mesma forma, o ciclo de globalização que se desenvolveu nos últimos quarenta anos sob hegemonia americana já começa também a dar sinais de ilegitimidade e esgotamento, depois do surto de expansão comercial e de integração das cadeias produtivas em meio ao qual o Ocidente abriu suas portas para a integração da China, mas o Brasil permaneceu à margem desse processo. O que fizemos, afinal, para mudar tal situação  ao longo dos últimos quarenta anos, quando o PIB decresceu e a produtividade permaneceu estacionária, em, depois de termos sido o país que mais cresceu ao longo do século XX?[1]

O fato é que vivemos o refluxo de uma globalização instável e desigual que gerou os anticorpos de um nacionalismo identitário e agressivo. Este nacionalismo ressuscita o espírito das nações e das soberanias ameaçadas, que rejeita o “globalismo” das Nações Unidas como uma ideologia corrosiva e de fachada. De fato, a ordem global, agora  polarizada entre os Estados Unidos e a China, anuncia a ascensão da hegemonia asiática. E nós, como diria Carlos Fuentes em Terra Nostra, “estamos morrendo ou nascendo”?  Em nome de que princípios e ideologias devemos reagir a estas mudanças?

Como ponto de partida devemos considerar as metamorfoses do capitalismo que o nosso candidato a presidente da República, Mário Covas, queria abraçar com mais vigor nas eleições presidenciais de 1989. Naquele momento, foi possível perceber um traço marcante de nossa cultura política que é o horror ideológico ao capitalismo e aos valores que ele representa: a competição, maior autonomia do mercado diante do Estado provedor e a exaltação da produção e da inovação em detrimento do distributivismo que o populismo tratou de incorporar. O resultado são ciclos distributivos elevados seguidos de contenção e pobreza extrema. Esta cultura estatizante  é parte integrante do patrimonialismo dos impérios e de uma cultura política em que os partidos  não conseguem vingar.

A exaltação ingênua do capitalismo tampouco parece ser uma boa escolha. Afinal, também o capitalismo está há décadas em franca mutação.  No início dos anos oitenta já uma  primeira grande ruptura havia sido registrada por Alvin Toffler em sua A Terceira Onda[2], que visualizou o capitalismo em suas recentes mutações , rejeitando o seu passado industrial. De fato, há um bom tempo estamos navegando na sociedade “pós-capitalista” anunciada por Peter Drucker em meio à proliferação crescente de organizações sociais paralelas à estrutura do Estado, que assumiram cada vez maior protagonismo como atores sociais[3].

Registramos também, na década de oitenta, visões antecipatórias sobre “o capitalismo desorganizado” de Claus Offe[4], ou sobre  “o fim do capitalismo organizado” de Scott Lash[5]. Concretamente, tais mudanças significavam o declínio do sindicalismo na sociedade de serviços e foi esta a constatação de Leôncio Martins Rodrigues sobre “o destino do sindicalismo”[6] que, no Brasil, demorou a desvendar sua condição cartorial, ligada ao clientelismo estatal.  A rigor, há trinta anos atrás já estava em discussão a crise do welfare state.  Diante dela, Christopher Pierson indagava como ir além do Estado de Bem Estar [7] .

Já naquela época fomentavam ideias críticas ao Estado de Bem Estar, algumas de caráter liberal, outras socializantes, mas os ambientalistas alegavam que o Estado era parceiro do consumismo e do desperdício, e  que não necessariamente produzia felicidade e bem estar. É o que argumenta hoje Jeffrey Sachs ao tentar explicar porque os grandes protestos urbanos são oriundos de cidades prósperas em termos de renda, como é o caso de Paris, Santiago e Hong Kong? [8] Efeitos colaterais incontroláveis irão se aprofundar ainda mais com a robotização que abate os empregos, alimentando  o crescimento da “nova economia”.

Formas estruturais de exclusão parecem estar aceleradamente concentrando a renda nos países capitalistas, tanto quanto entre as nações no plano global.    Diante de tal constatação cabe considerar que tipo de política social devemos abraçar no PSDB, sem esquecer que, neste quesito fomos também pioneiros, com o famoso discurso do recém eleito presidente Fernando Henrique  no Senado, onde ele exalta a presença das organizações sociais como os novos atores emergentes nas políticas públicas, especialmente na área social. Ruth Cardoso criou o Comunidade Solidária em parceria com a sociedade civil, demonstrando que as políticas universalizantes deveriam permanecer com o Estado, mas as políticas focalizadas produziam mais rendimento sob o comando das associações voluntárias.

Os programas de renda mínima foram também consolidados por Wanda Engel em um cadastro comum depois transformado em Bolsa Família- uma ideia original que partiu de Grama, prefeito de Campinas pelo PSDB.  O que nós, mulheres, faremos, tendo em vista nosso atávico vínculo com  a promoção do bem estar no âmbito da família, zelando pela  proteção da infância e da adolescência, e pelo cuidado com os idosos, em uma sociedade onde os empregos escasseiam, as máquinas substituem os homens  e as famílias se fragmentam ou se desintegram?

Os partidos não são necessariamente o que suas siglas revelam, mas também o que elas simbolizam e representam na prática social que se consolidou com  sua militância e no exercício do poder. Cabe, portanto, refletir sobre o nosso ponto de partida: quem somos nós, afinal, e o que fizemos com sucesso desde nossas origens? É preciso compreender o significado desta práxis  em nosso próprio imaginário político mas também no imaginário popular, tendo como ponto de reflexão as fontes de nosso sucesso e as raízes de nosso fracasso.

É oportuno lembrar que o PSDB foi fundado em 1988, há apenas trinta anos, em período relativamente recente.  Vez por outra fomos contaminados  pelas marcas do populismo, sindical e de massas, em geral nascidos do nacional-desenvolvimentismo que dominou a América Latina. Em nossas origens, no entanto, rejeitamos este compromisso enganoso onde a vontade política de distribuir é bem maior do que a determinação em gerar riquezas.

O pacto constitucional e a emergência do PSDB
A ênfase no social e o descaso pela economia

O PSDB nasceu da costela do PMDB que foi a única oposição institucional contra a ditadura militar nas décadas de setenta e oitenta.  Quando assumiu o poder no governo José Sarney que se seguiu à morte de Tancredo Neves, o PMDB o recebeu  em condomínio com o PFL, em 1985. O patriarca Ulysses Guimarães, oriundo da Ala Moça do antigo PSD, e de origem reformista moderada, congregava os próceres que em 1988 criariam o PSDB: Franco Montoro, Mário Covas, José Serra, Fernando Henrique Cardoso, entre outros.

O PMDB consolidou-se através de um movimento de massas e sua liderança se consolidou quando ele presidiu a Constituinte de 1988. A Constituição Cidadã tornou-se o o símbolo da democracia social em um país em desenvolvimento. Faltouàs lideranças políticas da época a percepção da crise econômica brasileira e da necessidade de rejuvenescer o modelo desenvolvimentista de origem militar.  A natureza ambígua e problemática  do compromisso constitucional herdado do PMDB, mais preocupado com a democracia do que com a economia em crise, influenciou as origens do PSDB.

A liderança de Ulysses se apagou aos poucos durante o governo de coabitação do PMDB com o conservador PFL ao qual era filiado o presidente José Sarney. O descontrole inflacionário e a dívida externa deixaram o governo inativo diante do primeiro grande desafio da redemocratização que era tentar controlar a inflação com planos econômicos que, afinal, não deram certo.  A ideia de uma nova ordem econômica liberalizante foi algo que amadureceu entre o núcleo de dirigentes do novo PSDB, inicialmente atraídos pelo liberalismo do governo Collor- e , em seguida, eles mesmos liderando essa missão liberalizante no governo de Itamar Franco,  e em seguida no governo de FHC.

Um aspecto importante é que o PSDB veio à luz sob a égide do compromisso com a ética, que não parecia ser a tônica da experiência pemedebista.  O clientelismo do PMDB era particularmente forte em São Paulo, seu principal núcleo regional, sob a influência  do governador Orestes Quércia. A ruptura se deu, em boa prática como dissidência contra o governador Quércia. A vocação democrática, vinculada ao compromisso ético, surgiu vinculada ao reformismo econômico, ao saneamento das finanças  e ao controle da inflação, graças ao bem sucedido Plano Real, no governo Itamar Franco sob o comando do tucano FHC.

Fortaleceu-se também, com o PSDB, sua capacidade de priorizar os ajustes financeiros e a gestão de  quadros técnicos competentes, aptos a exercer um governo voltado para o combate ao clientelismo.  Em suma, houve a opção por um partido menos  frentista e mais reformista;  mais programático e menos populista,  tendo como selo distintivo  a valorização técnica e profissional de seus membros e dirigentes, oriundos das universidades, das profissões liberais, e de quadros técnicos de governo, com experiência e vocação para a administração do poder. Esta marca indelével permanece como selo de qualidade do PSDB.

Houve ainda, desde as origens, um forte compromisso com a descentralização político-administrativa e com a valorização do poder local, através da participação dos cidadãos  e do princípio da subsidiariedade herdado da democracia cristã. Estes princípios foram aplicados exemplarmente no governo pioneiro de Franco Montoro, no despertar da redemocratização (1982-1986). No entanto, as bases políticas doutrinárias do PSDB estão vinculadas ao MDB em sua aposta no novo ciclo democrático consolidado pela Constituição de 1988. Da Constituinte participaram os seus membros mais ilustres.

Havia no programa fundador do Partido uma forte rejeição ao autoritarismo da ditadura e um compromisso fundador com o regime democrático e os direitos sociais, associados à distribuição de renda. Não devemos esquecer que foi Edmar Bacha, um dos pais do Plano Real, o autor de um polêmico e consagrado estudo realizado durante o regime militar,  em que ele descrevia o Brasil como a Belíndia, uma mistura da Bélgica com a Índia.  Na época, a euforia democrática mascarava os problemas que seriam criados pela Constituição Cidadã, e os obstáculo inusitados que se criaram contra o reformismo econômico.

A lógica da nova Constituição e do novo ciclo democrático precedeu a queda do muro de Berlim e da União Soviética, embora fosse contemporânea da China de Deng Xiao Ping. Mesmo assim, Mário Covas, o candidato presidencial do PSDB às eleições de 1989 soube  apontar um caminho que, na época, soava como um anátema ao recomendar como solução para a economia brasileira, “um choque de capitalismo”. Mas o preconceito contra o capitalismo morava em nossas entranhas.

A orientação política do governo Sarney, de frágil legitimidade, era a abertura democrática  que estimulou a proliferação dos partidos e a generosa distribuição dos recursos orçamentários.  Sem disciplinar os gastos nem aumentar a produtividade a economia, a economia  patinava com a inflação,  beneficiando sindicatos, a nobreza de toga, as profissões de controle e as novas castas do funcionalismo.  Quem pagava as contas desse temerário banquete era o povo que perdia suas rendas sob o impacto de uma  corrosiva hiperinflação. O orçamento e a dívida externa e interna sem controle tornavam quase impossível recuperar as bases da economia.  Esta grave lacuna da Constituição de 1988, enfrentada pelo governo e pelos quadros do PSDB foi cedo percebida como a chave do sucesso nos anos que se seguiram, tornando o equilíbrio monetário  e a disciplina fiscal a marca registrada do ministro da Fazenda, e depois presidente Fernando Henrique.

A defesa do parlamentarismo, adotada pelo PSDB, não conseguiu vingar, mas o apreço pela dimensão parlamentar tornou os seus governos, “governáveis”. Medida de grande sucesso- embora hoje esgotada-, foi adaptar para um regime híbrido (de presidencialismo e parlamentarismo) a governabilidade do “presidencialismo de coalizão”. Este princípio funcionou quando o número de partidos era mais restrito, mas perdeu a legitimidade quando se tornou um “presidencialismo de cooptação”, com a proliferação irracional dos partidos que os transformou em braço operacional do patrimonialismo.

O exercício da política demonstrou a vocação natural do PSDB para a arte de governar e administrar, tanto no Executivo quanto no Legislativo, e nos diferentes níveis da Federação. Apesar da recente e esmagadora derrota eleitoral, é possível constatar que quadros do PSDB comandam as reformas em curso no Congresso, tanto a reforma da Previdência, cujo relator foi Samuel Moreira na Câmara (PSDB/SP) e Tasso no Senado, quanto a Reforma Tributária, cujo texto inicial na Câmara teve como relator Luiz Carlos Hauly, que o aprovou na Comissão Especial na legislação passada. A relatoria da PEC 110 no Senado, cujo autor foi o mesmo Hauly,  está em mãos do líder do PSDB, Roberto Rocha (PSDB/MA).

Já o desempenho eleitoral no plano regional teve como feito mais notável a continuidade da administração em São Paulo, suas raízes originais  no Ceará, onde o governo de Tasso Jereissati e, posteriormente o de Ciro Gomes, ambos do PSDB, demonstraram que seria possível fazer uma boa gestão de políticas públicas e de administração fiscal em um estado pobre do Nordeste Brasileiro.  O sucesso administrativo se repetiu em Minas com a administração por resultado do governador Aécio Neves e  do governador, hoje senador Anastasia.

No Rio de Janeiro, ao contrário, o PSDB jamais operou com êxito as mensagens tradicionais do partido. E no Rio Grande do Sul coube à administração de Yeda Crusius sanear a administração deficitária do PT, com graves desequilíbrios financeiros.  Faltou, em geral, ao PSDB maior apreço pelas identidades regionais e por suas políticas de desenvolvimento, sufocadas pelo desequilíbrio fiscal e por fundos constitucionais viciados que precisam ser substituídos por fundos público- privados de investimento em infraestrutura. A era do pré-sal poderia realinhar esse novo ciclo virtuoso de desenvolvimento, regional e descentralizado, como medida exemplar vinculada ao pacto federativo nas prioridades programáticas do PSDB.

O fato é que, apesar  da fidelidade ao oposicionismo durante o reinado de Lula, o PSDB teve dificuldades de sobrevivência partidária ao permanecer tanto tempo na oposição nacional, em um país onde a política continua a ser fortemente dependente da influência dos governos  e das práticas populistas. Estas dificuldades nos colocam, neste momento, em um dilema partidário: investir prioritariamente nas políticas eleitorais para o pleito do ano que vem, fazendo composições com quadros de partidos tradicionais que possam nos garantir sucesso nas urnas; ou, ao mesmo tempo, provocar o realinhamento doutrinário que nos permita definir uma identidade própria e uma marca bem sucedida, depois do  insucesso das eleições presidenciais de 2018.

O ciclo das reformas liberais :
A difusão do empreendedorismo e do distributivismo

O Novo PSDB, vocalizado pelo governador João Dória, vem insistindo na necessidade de um realinhamento doutrinário que dê mais importância ao liberalismo como doutrina do que à social-democracia agonizante e excessivamente dependente do Estado. Cabe, de fato, refletir sobre o momento liberal em que vivemos no Brasil, em contraste com o que se passa no resto do mundo, onde o ciclo liberal que se iniciou com as  reformas de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, nos anos oitenta, abriu caminho para a inovação tecnológica a partir do mercado.

Estamos, portanto, com nosso ciclo de reformas atrasado de quarenta anos- embora Gustavo Franco pondere que o atraso é de apenas vinte anos.[9] No entanto, esta visão liberal que não adotamos no momento certo, tende a se contrair no resto do mundo, quando o liberalismo de mercado e suas excessivas desigualdades provocam protestos tanto no plano das ideologias e das doutrinas quanto na prática política.

Convém lembrar que o liberalismo nasceu na Inglaterra, a partir da Revolução Gloriosa, afirmando os direitos individuais  contra o Estado absolutista e opressivo. A marca profunda do liberalismo originário reside no individualismo, isto é, na proteção do indivíduo contra o poder invasivo e paralisante  do Estado. A doutrina  advogava maior poder à sociedade contra o Estado  e introduziu a ideia  do “contrato social” em nome da liberdade, do direito à propriedade e dos direitos civis. Nada muito diferente da situação em que vivemos hoje no Brasil, com o país paralisado pelo intervencionismo econômico de prazo vencido, e por um orçamento contaminado pelo rent-seeking, isto é, pelo rentismo que é parasitário do Estado.

Cabe, nesse contexto, considerar o impacto das medidas liberais que possam converter o país no paraíso dos investidores e dos empreendedores, ao invés de garantir, prioritariamente, o privilégio dos rentistas. De fato, a situação dos empresários em sua luta cotidiana para salvar suas empresas é desesperadora, em um ambiente de negócios insalubre que nos arrasta para as piores posições em matéria de competitividade no mundo. Nas dez dimensões medidas pelo Doing Business do Banco Mundial, a cultura cartorial que enfrentam os empresários brasileiros exige dos empresários um esforço hercúleo.

Na escala de competitividade estamos ocupando a 24ª posição, quinze a menos do que no ano passado, ao contrário do que vem ocorrendo com a China, a Índia e a Arábia Saudita, e atrás do Senegal, Uganda e Egito[10]. Em um país com processos burocráticos e hostis à iniciativa privada, empreender é quase um desatino. “Ser empresário no Brasil precisa deixar de ser um exercício de força e resiliência (capacidade de superar obstáculos) e passar a ser apenas um motor que gera desenvolvimento econômico e social”. [11]

Os subsídios beneficiam hoje grupos privilegiados que hoje controlam mais de 300 bilhões de reais. Nesse contexto, medidas liberais podem reativar o mercado, provocar a sua rápida abertura para novas tecnologias, e aumentar a produtividade e a competitividade das empresas, tanto no mercado interno quanto no mercado internacional.

No entanto, podemos imprimir a estas medidas o selo distributivista que cerceou, no início do século passado, os ímpetos monopolistas do capitalismo tanto quanto os vícios estatistas do socialismo. Cabe reativar, quem sabe, as antigas doutrinas do distributivismo do início do século, de fundo conservador e ligado à doutrina social da Igreja, mas comprometido com a difusão do capital e da propriedade, que eles consideravam a chave da prosperidade e da justiça social.   Nessa direção, devemos reativar políticas de democratização da propriedade e de desconcentração do capital, estimulando a repartição dos lucros e dividendos das empresas, e adotando  estímulos  ao empreendedorismo das pequenas e médias empresas.

Não devemos esquecer, porém, que o capitalismo está em muda, e que a inovação invade o campo das ideias e da política.  Estão se difundindo cada vez mais propostas como a dos “mercados radicais” de Eric Posner e Glen Weyl. Os autores se propõem reinventar o capitalismo e a democracia para uma sociedade mais justa[12].

O liberalismo do mercado, exige, por sua vez, o fortalecimento de funções regulatórias e o combate aos monopólios, inclusive financeiros e bancários, através das agências reguladoras que foram criadas pelo PSDB no governo FHC- mas que sofreram grave retrocesso, exigindo agora profunda revisão. Podemos arejar, em suma, o ambiente viciado do estatismo e do capitalismo de Estado brasileiro, tão condenado há décadas por Antonio Paim[13].  As start ups e outras pequenas unidades empresariais de forte concentração tecnológica, revigoram a economia de mercado estimulando a inovação e o choque tecnológico dentro de um novo ciclo produtivo, especialmente favorável também às grandes empresas.

Na mesma linha liberal podem ser enquadradas as reformas de Estado para revitalizar uma máquina velha, ineficiente e lerda, que acumula e superpõe atividades de todos os tipos e que precisa definir sua missão estratégica praticando melhor gestão e maior capacidade seletiva.  A reforma  administrativa não deve se limitar a cortar os privilégios de castas do setor público, cujos planos de carreira, salários e privilégios destoam do bom senso. Ela deve racionalizar funções e promover sua transversalidade, poupando esforços humanos e recursos financeiros.

A reforma deve também eliminar o monopólio de funções públicas  cuja exclusividade do

Estado não se justifica, e que podem ser delegadas à  sociedade ou em parceria com ela.como Este foi o caso das organizações sociais criadas no governo FHC na reforma do Estado concebida por Bresser Pereira, de inspiração saxônica e liberal. De que adianta o exercício de tantas atribuições indiscriminadas se o que seria de exclusiva competência federal, como é o caso da segurança pública, não funciona, deixando o país à deriva? E o que não dizer da educação onde o MEC e sua burocracia abusam de seu poder regulatório, inibindo iniciativas que o mercado de serviços educacionais poderia racionalmente promover ou eliminar. E por onde anda, nesse particular, a revolução tecnológica e pedagógica em processo avançado no resto do mundo?

No Brasil as reformas precisam, em realidade, reduzir o tamanho do Estado burocrático e patrimonial, ineficiente e invasivo, com a tendência a se expandir indefinidamente.  O essencial é fixar as competências exclusivas do governo federal, como o fez Bresser, e como o concebeu no passado o modelo federativo da Constituição americana. Restringir e delimitar competências, eis a reforma. E restaurar também as competências estaduais, esvaziadas pela Constituição municipalista de 1988. Devemos, certamente, arejar o poder municipal dele exigindo melhor desempenho, mas precisamos também aliviá-lo do poder discricionário e clientelístoco da burocracia federal, invasiva e incoerente.

Precisamos, sem dúvida,  de reformas liberais que tenham mais êxito do que tivemos no passado em acelerar a  desestatização e a desburocratização do Estado patrimonial brasileiro, não apenas com privatizações, mas com a desregulamentação da máquina infernal  dos controles excessivos que paralisam o empreendedorismo e a iniciativa individual, que oprimem e sufocam o cidadão pagador de impostos sem nenhum controle.

As doutrinas sociais e o capitalismo em mutação:
A desigualdade de rendas no banco dos réus

As políticas sociais como prioridade de governo, e como corretivo contra os excessos do capitalismo voraz e desumano, ganharam corpo no início do século XX, com o apoio da opinião pública e de intelectuais  influentes como Charles Dickens, H.G.Wells, Bernard Shaw,   que denunciavam as  injustiças sociais tratadas com negligência pela  Poor Law e as Work Houses da época.

O Estado de Bem Estar foi batizado pelo primeiro ministro conservador, Disraeli, que em seu livro Sybil, em torno de 1830, argumenta que “o poder tem apenas um dever: assegurar o bem estar social das pessoas”. William Temple, pensador cristão, popularizou o conceito durante a Segunda Guerra Mundial.  No entanto, a primeira proposta concreta  que vingou foi o programa ousado de assistência social compulsória concebido em escala nacional pelo aristocrata prussiano, Otto Von Bismarck. O projeto era  parte das reformas conservadoras  que ele implantou em oposição ao liberalismo econômico e ao socialismo radical que atraia os trabalhadores alemães.

O liberalismo se converte, de fato, ao liberalismo social no Reino Unido, no governo  de Herbert Henry Asquith, entre 1914-1918, que incluiu no pacote de suas reformas as pensões para aposentados, os seguros de saúde e o seguro desemprego. Antes disso, em 1900 criou-se o Labor Party no reino Unido,  que iria fortalecer as reformas de Asquith com seu manifesto de 2017, que diz: “esta é nossa visão de um país que trabalha para muitos e não para poucos privilegiados”.

Na Suécia, o regime implantou-se em 1932.  Nascia ali a social democracia a partir do poder crescente dos sindicatos iria, afinal se concretizar no Reino Unido com a criação  do Labor Party, herdeiro das bandeiras socialistas e partidário de uma aliança estratégia e visceral com o Estado. Criava-se, assim o contraponto entre o liberalismo social, mais amigo do mercado, e a social democracia,   aliada dos sindicatos, favorável à intervenção do Estado.

A perenidade o Estado de Bem Estar como ponto de referência principal do debate político reside, ao nosso ver,  em sua resiliência no sentido de se adaptar às exigências da democracia de massas, onde o voto do cidadão é o termômetro do nível de aprovação do governo. Há ainda o fato relevante de que  o regime capitalista ficou comprometido com a ideia de ampliar o número de consumidores, oferecendo maior  acesso ao mercado de bens e serviços.  Nesse sentido, políticas compensatórias no plano social alimentaram a economia de mercado e suas expansão qualitativa e quantitativa.

A atual crise do Estado de Bem Estar oferece, no entanto, outra dimensão importante que é a radicalização do individualismo aliado do consumismo que aprisiona o cidadão às forças de mercado, independentemente de sua satisfação e conforto. Os índices de felicidade coletiva vem registrando este desconforto que se origina das perdas da democracia comunitária americana, e das  bases de cooperação do ativismo social, normalmente dedicado ao conforto da vida coletiva. Este homem unidimensional, dominado pelo consumo, está na origem da crise cultural do capitalismo de massas que se dissemina pelos países desenvolvidos.

Voltemos agora à social democracia que se consolidou no pós-guerra mas que já  vinha se desenvolvendo antes disso,  sem esconjurar o capitalismo e o liberalismo, mas submetendo-os  a  críticas severas. A doutrina social democrata se consolidou a partir da devastadora  crise social de 1930, quando o liberalismo se desmoraliza e se enfraquece com a especulação financeira, despertando hostilidade crescente,  inclusive a ascensão do nazismo e do fascismo.

O keynesianismo da era Roosevelt deu status especial ao reformismo social e intervencionista, pois o New Deal não apenas expandiu as políticas de assistência social como encarregou o Estado de atuar diretamente sobre a oferta de bens e serviços,  como estímulo ao crescimento da economia, com expansão dos empregos e maior inclusão social. Esta mesma técnica está ainda viva, e se repetiu agora, com a crise de 2008. Criava-se, ao mesmo tempo, uma mutação curiosa de liberalismo progressista e libertário, fortemente favorável à inclusão social das mulheres, dos negros, dos imigrantes e das minorias em geral, resumindo as bandeiras do Partido Democrata. Formavam-se, a partir daí, dois campos adversos, o dos conservadores e dos liberais.

Políticas caracterizadas como de liberalismo social, foram também  abertas para enfrentar a inclusão e incorporar os direitos sociais, mas à sua maneira, sempre evitando a excessiva interferência do Estado e utilizando seguros privados como mecanismos de seguridade e de proteção social. Já a social democracia adquiriu um caráter político mais evidente, postulando ideias mais socializantes e anti-capitalistas de lenta conversão do Estado à democracia de massas e aos direitos fundamentais dos trabalhadores.  A verdadeira tomada do poder ocorreu na Europa do  pós-guerra, sob os escombros de uma economia destruída, e de uma sociedade socialmente fragilizada e ávida de segurança e de proteção do Estado.

Os avanços do trabalhismo inglês em direção ao socialismo deixaram suas marcas na política de acesso universal à saúde, inaugurada governo Labor de Attlee do pós -guerra. Esta permanente queda de braço entre políticas liberais de mercado, de um lado, e proteção social de outro, permaneceu ao longo das décadas. No entanto,  a aliança tripartite  entre o setor produtivo e os sindicatos sob a mediação do Estado, que foi a engenharia política da social democracia, entrou em descenso, sob a pressão das despesas excessivas do Estado e de uma burocracia estatal que acabou favorecendo a exclusão assistida, sob o controle do Estado e de sua burocracia ineficiente.

A volta revigorada da economia de mercado, a partir da década de 80,  propiciou o avanço da tecnologia e das assim chamadas “forças produtivas” que promoveram a revolução tecnológica e a sociedade pós -industrial. Resta agora saber se, diante das crescentes desigualdades, que politicas sociais de massa poderemos oferecer para fazer a reconversão dos trabalhadores para o mercado de trabalho de alta tecnologia com níveis educacionais mais elevados,e  mais flexibilidade de adaptação para as mudanças que hão de vir.

Existem, por outro lado, políticas sociais de última geração que procuram fazer um duplo esforço: erradicar a pobreza, sobretudo a pobreza extrema; e diminuir desigualdades, através de justiça tributária e outras formas de compensação social. No entanto, fica evidente que, em um mundo competitivo globalizado, os capitais são atraídos para as áreas onde seus lucros serão maiores, e as cobranças sociais, menores. Nesse sentido, cabe ressuscitar regulamentações globais como a Taxa Tobin, que teriam escopo internacional.

Devemos comentar, nesse particular, a concessão do prêmio Nobel de Economia a Esther Dufflos, que trabalha com a ideia de que o combate à pobreza é parte integrante das políticas de desenvolvimento econômico e não um tema lateral e complementar ao mesmo. Sua proposta remete a micropolíticas sociais integradas. Reduzir o percentual de pobres é fazer os investimentos certos no lugar certo.  Identificar as origens e as fontes da pobreza é a melhor maneira de combatê-las a partir de sofisticados meios de aferição comparativa.

Foi impactante ouvir a exposição dos chineses na recente reunião sobre a Governança dos Brics,[14] de como foi possível um ousado programa de erradicação da pobreza- não das desigualdades. Nesse processo, os instrumentos mais poderosos residem no planejamento e, como no caso de Esther Dufflos, na identificação por ousadas matrizes de controle, das variáveis que identificam e condicionam a própria pobreza, a partir das quais torna-se possível erradicá-las como o demonstram os pioneiros trabalhos de Ricardo Paes de Barros, antigo funcionário do IPEA.

A partir de tais experiências, fica evidente que existem mecanismos disponíveis de combate à pobreza, mas que o campo de batalha irá se travar contra as desigualdades sociais crescentes, e contra a globalização elitista. Três tendências recentes se interpenetram dando às desigualdades sociais o máximo protagonismo. Primeiro que, se o capitalismo é capaz de expandir ilimitadas despesas, como ocorreu com a primeira revolução industrial, está na hora de começar a redistribuí-las como ocorreu no início do século passado.

Piketty aponta, provocativamente que as desigualdades crescem porque vem sendo amparadas por uma ideologia tão falsa quanto qualquer outra e que nada justifica que o processo continue ocorrendo sem limites. No plano político, curiosamente, as cidades mais prósperas do mundo se rebelam contra os governos e as desigualdades impostas por eles, como ocorreu recentemente em Paris, Hong Kong e agora, em Santiago do Chile.

Um terceiro fator relevante vem se somar aos dois primeiros: o campo simbólico da luta política que vem se travando nos bastidores, com o despertar do Coringa, filme de Todd Philips, premiado no Festival de Veneza de 2019. Coringa, tido como gênio do mal converte-se no herói injustiçado, Arthur Fleck que, sem perceber, empolga as multidões revoltadas pelos desmandos e injustiças do mau governo que assola a cidade. Os mascarados se revoltam em Gotham a cidade suja que se encontra em mãos de governantes indiferentes, cruéis e insensíveis, alheios ao sofrimento da população.

Resta concluir em nome dos valores éticos e morais que um partido adota como bandeira de seu ativismo e de seus objetivos de longo prazo. Nascemos nos braços da democracia cristã de Franco Montoro. A democracia cristã vem combatendo há séculos o Estado forte e centralizado e defendendo a descentralização e a subsidiariedade que transfere para a sociedade civil o poder do Estado. Este, por sua vez, precisa se concentrar em sua missão estratégica de garantir unidade, integração e velocidade às mudanças que terão como base um povo e um território.

A doutrina católica ou protestante da democracia cristã defende há milênios o princípio cristão da fraternidade que a Revolução Francesa incorporou, sabiamente, ao seu discurso da Igualdade, Liberdade e Fraternidade. A igualdade é justos e nos remete à Justiça, valor supremo dos que exercem a vida pública. A liberdade do indivíduo é a fonte dos princípios liberais e do respeito ao pluralismo e à diversidade. E a fraternidade é nossa Humanidade. A mesma que  Jesus Cristo fundou na comunidade de iguais que ele fundou na longínqua Galileia. Todos somos iguais perante Deus, dizem os cristãos. Todos devemos ser iguais perante a Lei, dizem os liberais. Mas também todos devemos ter iguais oportunidades na prática real da existência humana.

Foi com esta visão e esta postura que João Dória ganhou as eleições para a prefeitura em São Paulo. Mirando, como diz ele, os que nada tem e os que mais precisam. No Estado em mãos do PSDB, a máquina pública tem e terá sempre que estar a serviço dos que mais precisam. Esse é o princípio de justiça que fundou o PSDB e que cala mais fundo no coração da mulher e dos jovens excluídos  que temos o dever de representar para livrar nosso país  da crise.  A fraternidade nos inspira a praticar a cooperação e a solidariedade, através de práticas sociais integradoras e inclusivas no seio das instituições- família, religião, empresas, associações voluntárias, todas elas empoderadas e prontas para superar esta longa e deletéria crise.

[1] Claudio Contador-
[2] Alvin Toffler, A Terceira Onda, A morte do industrialismo e o nascimento de uma nova civilização, Ed Record, Rio  de Janeiro, 1980.
[3] Peter Drucker, A Sociedade Pós-capitalista, Livraria Editora Pioneira, São Paulo, 1993.
[4] Klaus Offe, Disorganized Capitalism,Polity Press, Cambridge, 1985
[5] Scott Lash & John Hurry, The End of Organized Capitalism, Polity Press, Cambridge, 1987.
[6] Leôncio Martins Rodrigues, O destino do Sindicalismo, 1999, São Paulo, Edusp.
[7] Christopher Pierson, Beyond the Welfare State? Polity Press, Cambridge, 1991.
[8] Jeffrey Sachs, Valor, 24 de outubro de 2019.
[9] Entrevista de Gustavo Franco,  O Brasil está vinte anos atrasado nas reformas, Estado de São Paulo, Economia B3
[10] Doing Business, 2019, Banco Mundial.
[11] Ana Carla Abrão, Estado de São Paulo, B5.
[12] Eric A. Posner & Glen Weyl, Mercados Radicais, reinventando o capitalismo e a democracia para uma sociedade mais justa, Princeton University Press, 2018.
[13] Antonio Paim, O mito do estatismo.
[14] Documento apresentado na reunião Governança dos BRICS, realizada pela Fundação Getúlio Vargas como prelúdio da reunião oficial em novembro, em Brasília.

*Artigo publicado no site do Congresso Partidário do PSDB Nacional