Opinião

“Nenhuma sociedade trata de maneira igual seus homens e suas mulheres”, por Solange Jurema

A reprodução dessa frase, em geral, remete ao feminismo e às militantes da causa feminista. Porém, não se trata de nenhuma palavra de ordem, é uma constatação da Organização das Nações Unidas (ONU) feita, mais precisamente pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), depois de analisar a questão do gênero em mais de cem países. Em nenhuma das nações observadas foi possível encontrar igualdade total entre homens e mulheres.

Quando investigamos a questão da desigualdade e outros índices de desenvolvimento no Brasil, o cenário é ainda mais preocupante. Um a cada quatro mulheres sofre violência em nosso país. Estamos na 172ª posição no ranking que mede a ocupação dos espaços de poder por mulheres. Se o resto do mundo trata de maneira desigual seus homens e mulheres, o Brasil lida com tema de modo ainda pior. Evidentemente isso traz consequências graves para a população como agravamento da pobreza, e para nós mulheres, torna ainda mais distantes os espaços de poder seja na política, nas empresas públicas ou privadas.

Por muitos anos não havia, em nenhum país, políticas voltadas para a diminuição dessas desigualdades, pelo simples fato de que este não era um problema reconhecido. A discriminação de gênero ou de raça também não era admitida no Brasil. Somente com o surgimento do movimento feminista se passou a questionar as relações entre homens e mulheres. O mercado de trabalho foi o ambiente no qual as mulheres se encontraram e contestaram essas disparidades.

Até meados do século XX, os papéis sociais destinados aos homens e mulheres estavam muito bem definidos. Tudo o que se referia ao público e ao poder era reservado aos homens, e a esfera privada, do lar, às mulheres. No entanto, é no espaço público que as decisões são tomadas, conceitos políticos, jurídicos ou filosóficos são formados.

Durante a elaboração conceitual que atinge diversas áreas como a história, a função da mulher no desenvolvimento brasileiro foi omitida. O trabalho da mulher não era visto como algo relevante para a sociedade, muito embora a base da agricultura familiar, o cuidado das crianças – não fornecido pelo Estado -, dos idosos, o trabalho de licenciatura primária, fossem serviços quase que exclusivamente femininos.

O jurista Clóvis Beviláqua, autor do Código Civil Brasileiro de 1916, que vigorou até 2003, afirmava:

“Em tudo aquilo que exigir mais larga e mais intensa energia intelectual, moral e física o homem será mais apto do que a mulher, mas em tudo que exigir dedicação, persistência, desenvolvimento emocional delicado, o homem não pode ser equiparado à sua companheira”.  

O pensamento do relator do Código Civil era reflexo do comportamento da sociedade da época. Eram os homens que detinham o poder, se a mulher era considerada adúltera perdia o direito sobre os filhos. Ainda que muitos avanços tenham sido conquistados nas últimas décadas, não resta dúvida de que há muito para ser mudado.

É importante que nossos jovens conheçam a trajetória dos espaços ocupados pelas mulheres no Brasil para que possam compreender como a nossa geração, especialmente das pessoas que nasceram até 1950, abriu caminhos para mudar o panorama de desigualdade de gênero, apesar de ainda termos tanta discriminação.

Tínhamos alguns paradoxos no país no que se refere ao âmbito jurídico, que reforçavam ainda mais o patriarcado. Por exemplo, ainda que não tivéssemos pena de morte legalmente instituída, um marido poderia, diante da suspeita da infidelidade de sua esposa, matá-la sob o argumento de Legítima Defesa da Honra. Não raro os homens, em sua maioria, eram absolvidos de seus delitos ou sentenciados a penas ínfimas. Esta interpretação jurídica teve força até meados da década de 70.

Antes que a legislação fosse alterada, as mulheres foram para as portas dos tribunais e exigiram uma nova postura dos magistrados. Mobilizações como essas foram fundamentais para que se pudesse reescrever a história brasileira. A própria Constituição de 1988, com a garantia de igualdade entre homens e mulheres, foi resultado de uma série de lutas.

Gradualmente todas as legislações como Códigos Civil e Penal foram obrigadas a se adaptar à nova Carta Magna. Antes da Constituição de 1988, o estupro era considerado um crime contra os costumes e não contra a pessoa. O sofrimento da mulher estuprada não era levada em consideração, uma vez que as leis valorizavam apenas a dignidade da família.

Todos esses fatores reforçam a ideia de que as mulheres precisam estar em locais onde possam influenciar essa construção de conceitos. A cultura está impregnada não só no Direito, na política, mas também em áreas como a saúde. Quantas vezes já ouvimos a frase “mulher nasceu para sofrer”? Esse pensamento já foi tão incorporado à crença cotidiana que muitas vezes profissionais de saúde, médicos e enfermeiras, se recusam a prestar o devido atendimento a uma mulher durante seu trabalho de parto, apenas porque o sofrimento é algo, em tese, inerente à sua natureza.

Situações como estas nos motivam a trabalhar para que um maior número de mulheres se engajem na política brasileira. As mulheres precisam participar mais efetivamente dos debates políticos, das lutas pela elaboração de leis que nos favoreçam.  O filme As Sufragistas, lançado este ano no Brasil, conta a história do esforço empreendido por um grupo de mulheres inglesas no início do século XX para garantir o direito ao voto. Em um determinado momento uma das personagens afirma que os protestos não tinham por objetivo infringir a lei. Toda a contenda era a manifestação do desejo de ter leis construídas por mulheres para que estas tivessem suas necessidades atendidas.

É exatamente isso que nos falta compreender, a importância de que a política pode começar a ser mudada pelas vereadoras e pelas prefeitas. Algumas políticas afetam muito mais a nossa vida do que a dos homens. Um bom exemplo são as políticas sociais, os homens nunca brigaram por uma creche. Problemas como falta de saneamento básico, que provoca doenças graves em crianças, e dificuldades causadas pela seca são apenas dois de muitos exemplos de condições sociais graves, cujas consequências recaem mais sobre as mulheres.

As prioridades políticas de homens e mulheres nem sempre coincidem, especialmente no que se refere à área de educação. Ter escolas e creches em tempo integral é uma política que vai trazer benefícios para as nossas crianças, combater a pobreza e diminuir as inúmeras distorções existentes. A educação dá oportunidade a todos de fazerem uma universidade e de se qualificarem para postos de emprego.

A participação da mulher na política muitas vezes fica comprometida pela falta de tempo, uma vez que constantemente precisam lidar com jornadas duplas de trabalho, em casa com a família e em suas atividades profissionais. Por essa razão, é imprescindível que sejam criadas políticas de gênero.

Mais recentemente surgiu outra séria emergência de saúde pública, que vem afetar diretamente as mulheres, o Zika Vírus, associado à má formação no feto, como a microcefalia. O número crescente de casos em todo país é alarmante. Há mais uma vez uma demonstração do descaso com as políticas sociais voltadas para às mulheres. A ausência do Poder público transfere para às gestantes toda a responsabilidade, inclusive sobre a decisão do aborto. No entanto, vale ressaltar que os casos de microcefalia somente são confirmados a partir da 32ª semana, quando o aborto não é mais possível.

Neste momento político conturbado em que o Brasil está imerso, nós mulheres, maioria da população e do eleitorado, temos o dever de transformar a política. O processo de reconstrução do qual a nação precisará passar em um futuro próximo depende de nós, e conto com a participação de cada uma de vocês.

*Solange Jurema é presidente de honra do PSDB Mulher Nacional e ex-ministra do governo Fernando Henrique Cardoso