Opinião

“A pluralidade da Lei Brasileira de Inclusão”, por Mara Gabrilli

Após comparar um bebê com síndrome de Down a um filhote de cachorro, uma blogueira pernambucana foi acusada pelo Ministério Público de seu estado por ter praticado o “crime de discriminação de pessoas em razão de sua deficiência”. A denúncia apresentada pelo MPPE foi embasada no artigo 88, parágrafo 2º, da LBI, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (nº 13.146/2015).

Por ter utilizado a internet para propagar o comentário repugnante, a pena da blogueira pode ser ampliada para até cinco anos de prisão, além do pagamento de uma multa de valor a ser definido pela Justiça. Ocorrido no ano passado, este foi um dos primeiros casos em que a Justiça brasileira contou com um instrumento legal que tipifica o crime de discriminação à pessoa com deficiência.

Saindo do nordeste, rumo ao Sul do Brasil, uma decisão infeliz da 2ª Vara da Fazenda Pública de Florianópolis ilustra mais um desses casos onde a discriminação parece ser institucionalizada em nosso país.

Por meio de uma liminar, escolas particulares do estado de Santa Catarina ganharam o direito de cobrar taxas extras de alunos com deficiência. O pedido, encaminhado pelo Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado de Santa Catarina (Sinepe/SC), felizmente, não vingou, já que o Supremo Tribunal Federal decidiu, por ampla maioria, a improcedência da ação.

A decisão do STF novamente baseou-se na constitucionalidade da Lei Brasileira de Inclusão, que determina ser dever do Estado, da família, da comunidade escolar e de toda a sociedade assegurar educação de qualidade à pessoa com deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de violência, negligência e discriminação.

Após 15 anos de tramitação e um árduo trabalho de consultas e audiências públicas por todo o Brasil, a LBI – relatada por mim na Câmara dos Deputados – completou neste último mês dois anos em vigor, assegurando e instituindo direitos em áreas fundamentais.

Na educação, por exemplo, a Lei Brasileira de Inclusão prevê a multa e reclusão ao gestor que recusar ou dificultar o acesso ao aluno com deficiência. Isso significa que nenhuma escola particular pode hoje cobrar taxa extra de qualquer aluno com deficiência ou recusar sua matrícula. Prática até então recorrente no Brasil.

Na área da saúde, as operadoras de planos e seguros privados de saúde já têm a obrigação de garantir à pessoa com deficiência, no mínimo, todos os serviços e produtos ofertados aos demais clientes. Além disso, essas empresas estão proibidas de recusar pacientes com deficiência ou cobrar a mais deste público. Direitos que já estão em vigor e devem ser exigidos.

Na área de mobilidade urbana, a LBI passou a responsabilidade da reforma de calçadas ao Poder Público. A legislação alterou o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) para exigir da União, por iniciativa própria e em conjunto com os estados, do Distrito Federal e dos municípios, a promoção da melhoria das condições das calçadas. Isso significa que agora todo gestor público municipal é obrigado a elaborar um Plano Diretor Estratégico e/ou Código de Posturas, que deverá conter um plano de rotas acessíveis.

Ou seja, prefeituras de todo o Brasil são obrigadas a liderar o processo de reforma e manutenção das nossas calçadas e o não cumprimento desta diretriz pode resultar em punição ao gestor e até perda do mandato.

Ainda propomos programas no mercado de trabalho. Empresas que contratarem pessoas com deficiência para participar de programas de capacitação têm hoje a obrigação de empregá-las durante o mesmo período, garantindo assim não apenas a qualificação, mas um trabalho simultaneamente. Mas para que isso funcione na prática, as empresas precisam ser fiscalizadas.

Pensando em direitos ainda mais distantes da realidade do brasileiro com deficiência, mas não menos transformadores, como o acesso à arte, à cultura e ao lazer, a LBI estabeleceu o direito de escolha ao público com deficiência em casas de shows e espetáculos, que agora devem ofertar acessibilidade em todos os setores do espaço, não mais em áreas segregadas. E os estabelecimentos precisam se adequar a nova lei e se conscientizarem de que trata-se de um direito do público com deficiência, que é tão consumidor quanto qualquer outra parcela da população.

Já para as salas de cinema de todo o Brasil restam dois anos para a adequação à LBI, que prevê a exibição semanalmente ao menos uma sessão acessível para o público com deficiência auditiva e visual. Pensem o quão gratificante será a um cego ou um surdo (ou os dois juntos, por que não?) poder pegar um cineminha e ter janela de Libras, legenda closed caption e audiodescrição?

Lembrando também que o acesso à leitura de todo o cidadão cego não pode mais ser subtraído. As editoras de livros devem ofertar todos os seus títulos também em formato acessível. A LBI traz bem claro em sua redação que as editoras não podem, sob nenhum argumento, negar essa oferta. Cabe-nos agora cobrar para que este direito seja respeitado.
No Código Civil, a mudança também é transformadora: respeita o direito ao amor. Pessoas com deficiência intelectual, que até então tinham seus direitos civis ignorados, hoje já podem se casar sem autorização da Justiça. Esses cidadãos agora podem votar e ser votados.

Vale ressaltar, que todas as propostas da Lei Brasileira de Inclusão, a começar por seu próprio nome, emanam de mãos, mentes e corações que trabalharam juntos, deixando de lado qualquer bandeira ou ideologia partidária. Foram inúmeras audiências por todo o Brasil, além de uma consulta pública que durante seis meses ficou disponível no portal e-Democracia, plataforma onde surdos e cegos, pela primeira vez no Brasil, puderam contar com recursos de acessibilidade que possibilitaram a participação plena destas pessoas, que puderam sugerir alterações a uma lei que é deles e para eles.

Somos um contingente que atualmente ultrapassa os 45 milhões. Em ano de eleição, o Governo tem hoje a chance de abater uma dívida histórica com a pessoa com deficiência e regulamentar artigos ainda pendentes da LBI, como o de classificação de deficiência no Brasil, a atuação do auxiliar de vida escolar, o direito ao saque do FGTS para a aquisição de órteses e próteses, entre outros. Sem contar da fiscalização de direitos que mesmo já estando em vigor ainda não são cumpridos plenamente – seja pela esfera pública ou a privada.

Nestes dois anos de vigor da LBI, olho para trás e me orgulho do que a pessoa com deficiência conquistou – por mais incipiente que este movimento ainda pareça. Mas temos agora uma nova jornada a percorrer, a começar pelo entendimento desta Lei que é tão plural e precisa ser compreendida em sua dimensão. A LBI, maior exemplo de construção coletiva de uma legislação produzida no Brasil, além de ter pautado democracia no Congresso Nacional, mostrou a capacidade de resiliência da pessoa com deficiência em nosso país.

(*) Mara Gabrilli, deputada federal pelo PSDB/SP, publicitária, psicóloga, foi secretária da Pessoa com Deficiência da capital paulista e vereadora também por São Paulo. Atualmente, exerce seu segundo mandato na Câmara dos Deputados. Em 1997, após sofrer um acidente de carro que a deixou tetraplégica, fundou uma ONG para apoiar o paradesporto, fomentar pesquisas cientificas e promover a inclusão social em comunidades carentes. Artigo publicado no blog da Fausto Macedo, do Estadão, em 1º de fevereiro