A gente está cansada de ser Gata Borralheira, de precisar de príncipe (branco e rico)
Olá, Aline.
Engraçado você ter o mesmo nome de uma grande amiga, também mulher negra e maravilhosa. Infelizmente minha Aline deixou esta terra, mas nada é por acaso e te tenho afeto já desde o nome.
Afeto é importante pra te dizer todas as coisas que se seguirão.
Eu queria primeiramente te desejar parabéns! No último dia 25 de julho comemoramos o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Parabéns pra nós!
Eu li sua entrevista no Segundo Caderno e, nossa, como você é linda! Li que é de Minas Gerais e que mora com a avó na Freguesia. Li atenta quando você disse que não foi fácil ser uma das poucas negras na sua turma. Eu não passei por isso, minha turma era cheia de meninas negras, mesmo que a gente não soubesse disso. Mas queria te confessar uma coisa: eu estudava numa escola pública na Tijuca, bem perto do Colégio Palas, particular e tradicional no bairro. Sempre encontrávamos as meninas desse colégio porque os horários da saída coincidiam. O Palas só tinha uma aluna negra. Como se não bastasse, ela era bem pretinha, que dava ainda mais contraste com as outras meninas que andavam ao seu lado. Eu e minhas amigas implicávamos sempre que podíamos com essa menina negra e só depois de grande eu me dei conta do quanto ela devia sofrer. Era puro recalque nosso. Eu espero que ela seja maravilhosa hoje e que tenha transformado o recalque da vida em empoderamento. Assim como nós.
Eu li muitas críticas à matéria que apresentava você como protagonista e à personagem, mas queria que você soubesse que não é pessoal. A crítica é feita a essa escrita que nos coloca sempre no mesmo papel: a menina negra, nordestina, batalhadora que vem para o Rio buscando realizar seus sonhos, mas acaba como empregada doméstica e se apaixona por um príncipe (branco e rico).
A gente está cansada de ser a Gata Borralheira, de precisar de baile e de príncipe para ser feliz.
A personagem de que gosto é a Fada Madrinha: uma mulher mais experiente, que exerce aquilo que chamamos de sororidade. Ela abre suas redes, usa suas habilidades, melhora a autoestima da jovem com roupas novas, maquiagem e sapatos maravilhosos. E ainda ajuda com conselhos sobre o caminho a se seguir.
— Ao soar das 12 a magia cessará e tudo que era antes voltará.
Ou:
— Pode lacrar tudo, mas não se esqueça de onde você veio!
Sabe, Aline, quando em 2009 a gente viu o Micael Borges ser o primeiro protagonista negro em “Malhação”, a gente se empolgou… O personagem dele também vinha da praia, também era cearense e batalhador.
Sabe, Aline, fica parecendo que os protagonistas pretos dessa novela na verdade não são negros, eles só têm essa cor porque “por acaso” pegam muito sol. E, de 2009 pra cá, não se ouviu mais falar em representatividade até você chegar. E, de lá pra cá, a gente já deixou de falar de representatividade para falar de proporcionalidade. Se os negros são a maioria, por que não aparecem dessa forma?
Eu não quero que você seja a única. Ser a única é peso demais pra qualquer um e não te desejo isso. Vão ficar te cobrando que você leve todas as pautas, represente todas as lutas. Fuja disso!
Quando eu vim para este espaço eu tive medo de me chamarem de “vendida”. Não que eu achasse que isso era importante, mas é que, como você, quando as pessoas não te conhecem, não sabem da sua história, elas acham que têm o direito de pensar e dizer qualquer coisa.
Isso não aconteceu comigo — bom, talvez pelas costas. E espero que isso não aconteça com você também. Espero que seus amigos estejam tão felizes quanto os meus estão.
Na matéria, a fala do diretor é que você foi escolhida por acaso, não por ser negra, mas porque “não poderia ser uma atriz que passa fragilidade”. Eu não acredito no acaso, mesmo porque outro estereótipo que ficou para nós, enquanto mulheres, é dessa mulher que é guerreira, uma fortaleza, que aguenta tudo, que não pede licença pra vida. Portanto, também não é por acaso que a mulher negra ocupe os “piores empregos”, por isso que ela morre mais, apanha mais, recebe menos anestesia na hora do parto…
Vou te contar outro segredo: eu venho de uma família de empregadas domésticas, minha mãe é empregada doméstica até hoje e os patrões dela leem minha coluna. Na verdade eles leem e guardam para que ela leia quando vai trabalhar, às quintas, já que eu escrevo às quartas. Minha mãe é muito orgulhosa de mim, e eu sou muito orgulhosa dela. Mas na minha infância, quando não queríamos estudar, a fala da minha mãe era: “Se não estudar, vai virar empregada doméstica!”
Entende? Meu castigo da vida seria me tornar empregada doméstica. Então, quando você, negra e protagonista, está nessa posição, é como se fosse o seu castigo. Me perdoe se estou sendo dura. Mas é que seu papel — extremamente importante! — neste momento histórico ainda vem carregado de durezas.
Vamos falar de coisas boas! O que você tem lido? Tem ido ao cinema? Você já assistiu ao filme “Menino 23”? Está nos cinemas agora, e é um documentário que fala sobre a relação das elites brasileiras e crenças nazistas nos anos 1930 e um projeto de eugenia. Cinquenta meninos foram escravizados e eles contam principalmente a história do seu Aluísio, o menino 23. Talvez não seja um bom conselho, porque é bem difícil de assistir. Mas é importante, porque reflete muito da sociedade que ainda somos hoje e dos motivos de você ter demorado tanto tempo para ser protagonista.
A vigésima quarta protagonista. Menina 24.
De novo, parabéns e avante. Porque, se uma mulher negra avança, ninguém fica para trás.
*Publicado originalmente na edição do dia 03 de agosto do jornal O Globo