Sou pai de duas criaturas belíssimas. Não estou me gabando. Tenho consciência de que a beleza delas é herança materna. Lido todos os dias com o espanto de desconhecidos: “São lindíssimos os seus filhos! Como é possível?!”
As pessoas mais delicadas evitam aquele “como é possível?” – mas eu leio nos olhos delas a maldita incredulidade. Então mostro uma fotografia da mãe e sossegam um pouco: “São a cara da mãe, os dois. É negra, ela?”
Depende. Em Angola é mulata. Na maior parte dos países africanos também. É negra no Brasil, nos Estados Unidos e na Suécia ou na Dinamarca. Na Índia, no Reino Unido ou na África do Sul, tem sido indiana. Quanto a mim, sou meio indiano na Índia, meio malaio na malásia, de raça indecifrável nos Estados Unidos, e totalmente árabe em qualquer país do norte de África, na Bélgica, em França, na Alemanha ou na Suécia. Viajando pela Europa, sou quase sempre muito árabe.
Na Suécia, como no resto da Europa, é difícil ser árabe nos dias que correm, ao menos nos dias úteis. Sábado e domingo (que são dias que não correm, espreguiçam-se), os suecos bebem. Sabemos que um sueco bebeu um pouco para além da conta quando ele nos estende a mão sem que ninguém nos tenha apresentado e começa a conversar. Uma noite, em Estocolmo, estava eu num bar, na companhia de um amigo angolano, quando um sueco nos estendeu a mão. Era sábado:
“Salaam aleikum!”, saudou o sueco: “Simpatizo muito com vocês, os árabes. Vocês têm sofrido muito.”
Agradecemos. Ao princípio ainda tentamos corrigir o equívoco. O sueco ignorou os nossos argumentos.
“Têm sofrido muito, sim!”, insistiu, abraçando-nos. Chorava: “Peço perdão por tudo que os europeus vos têm feito sofrer”.
Mandou vir cerveja para os três. “Salaam aleikum!”, bradou, erguendo a taça. Logo a seguir deu-se conta de que talvez tivesse cometido uma horrível gafe, desculpou-se, e pediu para trocar a cerveja por chá. O meu amigo recusou a troca, indignado. “Aleikum salaam!”, gritou, e bebemos todos.
Voltemos aos filhos. O mais velho, um rapaz, ultrapassou o metro e oitenta e oito e estuda em Brighton, no Reino Unido. É um garoto doce, que nunca deu preocupações, exceto quando era bebê, em Luanda, durante a guerra. Chorava muito à noite. Nada o acalmava. Os gritos dele inquietavam os cães. Um cachorro respondia, aos uivos, e logo outro se juntava ao primeiro, num quintal próximo, e depois outro e mais outro. Três minutos após o início da choradeira ouvia-se um tiro (algum vizinho alertado pelo ladrar dos cães), e logo se instalava um tiroteio. Cada vez que o menino chorava, a guerra voltava.
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