Completamos na última semana 30 anos da eleição de Tancredo para a Presidência da República. Não são poucos os brasileiros que se lembram do significado daquele momento. Depois de uma campanha que mobilizou todo o país, ao lado de outros grandes compatriotas, Tancredo conduziu o Brasil ao reencontro com a democracia.
Naqueles dias, nosso país teve uma felicidade: pôde contar com homens públicos à altura dos desafios que se impunham. Homens para quem a atividade política era um instrumento para servir ao povo e ao país. Hoje, diante do descalabro da política brasileira, palavras como essas soam demagógicas e falsas. Mas sei que no coração de muitos de nós paira a mesma perplexidade: por que nos apequenamos tanto como classe política?
Minha memória daqueles dias não se fixa apenas na força das palavras de Tancredo Neves, na alegria de milhares de pessoas em tantas praças do país, nos sinos que tocaram em São João del Rei naquele 15 de janeiro de 1985. Lembro-me da sua voz embargada, da emoção escondida no seu olhar.
Em seu discurso, citando o poeta francês Paul Verlaine, disse: “Entre o êxtase e o terror de ter sido o escolhido, me entrego hoje ao serviço da nação”. Muitas vezes há quem perca de vista a dimensão humana e pessoal de cada um de nós que ocupamos uma função pública.
Naqueles dias, eu morava com Tancredo em Brasília. Na véspera da eleição no Colégio Eleitoral, tarde da noite, fui até a sala onde o encontrei dormindo na poltrona com os jornais do dia no colo. Ele havia adquirido o hábito de só lê-los à noite. Talvez para evitar a tentação de responder a algum comentário ou se distrair com alguma informação irrelevante para a sua estratégia.
Tirei os seus óculos. Guardei os jornais e, antes de acordá-lo para que fosse descansar melhor no quarto, tentei imaginar a emoção que deveria estar tomando conta dele naquele momento.
Naqueles últimos meses acompanhei dia e noite aquela que se transformou na bela articulação política que permitiu a construção das condições para que o país encerrasse o ciclo autoritário e se reencontrasse com a democracia tão esperada. Olhando de longe, tudo parece mais fácil do que realmente foi.
Com dedicação e paciência, bravos brasileiros construíram pontes que nos permitiram deixar para trás o nosso passado.
É claro que nem todos pensavam da mesma forma. É claro que havia divergências. Mas havia confiança. Havia entre eles respeito pela palavra dada e pelo compromisso assumido. E havia algo maior, comum a todos aqueles líderes: um profundo amor pelo Brasil e a percepção sincera de que os brasileiros eram mais importante que qualquer um deles.
Por isso, consensos puderam ser construídos e o país pôde avançar. Naqueles dias, “interesse nacional” não era apenas uma expressão perdida em um discurso.
Recordo-me que após a eleição, já como presidente eleito, Tancredo viajou ao exterior com um grupo pequeno de pessoas. O objetivo da viagem era tornar irreversível o processo de democratização do Brasil. Dirigentes dos países democráticos visitados percebiam o significado estratégico da iniciativa de Tancredo e o recebiam e saudavam como chefe de Estado, dando sua contribuição à luta de tantos brasileiros. Porque a política também é feita de simbolismos.
Hoje penso naqueles dias. Em tudo que pude testemunhar e aprender. E, com imensa saudade, como brasileiro, manifesto o meu profundo reconhecimento àqueles homens que não faltaram ao Brasil. Que a memória deles encoraje a consciência de cada um de nós que escolheu a vida pública e não nos deixe esquecer que, mesmo não sendo fácil, às vezes, precisamos apenas ter a coragem de fazer o que precisa ser feito. É simples assim.
Cada geração tem o seu compromisso com a história. Precisamos honrar o nosso como eles honraram o deles. Que Deus guarde cada um desses grandes brasileiros.
Artigo publicado na Folha de S.Paulo no dia 18 de janeiro de 2015.
*Rede45