Opinião

“O atentado em Paris e a liberdade de expressão”, por Lêda Tâmega

LEDA TAMEGA 1O atentado terrorista contra a sede da revista Charlie Hebdo, que matou  doze jornalistas e enlutou a França, foi o estopim para uma série de manifestações em defesa da liberdade de expressão e em repúdio ao fanatismo religioso e a toda forma de violência contra órgãos de imprensa e  profissionais do jornalismo. O mundo se mobilizou. A comoção causada por esse ato de barbárie, inédita pela dimensão planetária que alcançou, levou às ruas, com o apoio de lideranças políticas dos cinco continentes, cerca de quatro milhões de franceses, empunhando a nova face do lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”: Je Suis Charlie.

Em meio às sangrentas e cada vez mais frequentes atrocidades praticadas, desde o 11 de setembro, por terroristas islamistas,  o pavor, a revolta e a indignação se espalham mundo afora, assim como crescem as mobilizações dos povos que têm na liberdade de expressão e na democracia a espinha dorsal de sua estrutura como Estado-nação. Esses são princípios incompatíveis com a visão totalitária de grupos extremistas, cujo objetivo  precípuo é impor ao mundo sua ideologia e calar os que pensam diferente por meio da disseminação do medo entre os cidadãos.

Fatos de tamanha gravidade têm um impacto brutal na mente das pessoas, que se interrogam sobre o porquê desse ódio e dessas selvagerias, que põem em risco a própria sobrevivência da humanidade. Não há como não meditar, refletir e buscar respostas. São inúmeras as opiniões já externadas a respeito do ataque covarde ao semanário parisiense, na sua grande maioria de repúdio aos carrascos da liberdade de expressão, pois, afinal, suas armas visaram especialmente os desenhistas que publicaram sátiras sobre a figura do criador da religião muçulmana, cuja face, acreditam, não se pode mostrar. E isto basta para que se cometam sequestros, decapitações,  massacres, carnificinas, a torto e a direito, em nome de  Deus. É a volta à barbárie pura e simples, condição intolerável na era em que vivemos e que deve ser combatida sem trégua com todos os meios pela comunidade internacional. A liberdade de expressão é um bem inegociável, já que é o sustentáculo das nações que se constituíram sob a égide do estado democrático de direito.

Por outro lado, não se pode deixar de refletir sobre o conceito de “liberdade de expressão’”. O que é “liberdade de expressão”, na mais completa acepção do termo? Engloba ele o sentido de “infinito”? Ou comporta a ideia de  “limite”? Aquele que utiliza o direito de se expressar livremente pode fazê-lo indiscriminadamente, sem restrições, independentemente de  ferir ou não o direito, os valores, as crenças de outrem? Não importando se ridiculariza, ofende, desrespeita, tripudiam normas ou convicções sedimentadas pela tradição, seja religiosa ou cultural,  de pessoas ou comunidades inteiras, assemelhando-se, guardadas as devidas proporções, à condenável atitude que, em nossos dias, leva o nome de “bullying”?

Nessa linha de pensamento, mesmo sendo defensora intransigente da garantia do direito à livre expressão de pensamento e ideias a todas as pessoas, entendo que esse direito não pode ser exercido de modo ofensivo, humilhante e desrespeitoso para com valores e princípios professados pelos outros.

Entendo que, assim como são extremistas os islamistas que metralham, sequestram, detonam explosivos e decapitam, em nome de Deus, para impor suas ideias e crenças, também àqueles que usam a liberdade de expressão para debochar, humilhar, ofender seu semelhante agem como se dessem uma estocada naquilo que o ser humano preza como seu bem mais precioso: a sua dignidade.  Agem, sem dúvida nenhuma, como extremistas: Extremistas do verbo, fundamentalistas da liberdade de expressão.

A liberdade de expressão não pode ser um cavalo desenfreado a correr em campo aberto. Aliás, o sentido de “Liberdade” como concebido pela própria Revolução Francesa,  aparece assim definido no artigo sexto da versão de 1793:

“A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique os outros. Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem ou mulher não tem limites que não sejam os que garantem [aos] outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos”.

E foi com alegria que tomei conhecimento do pensamento do Papa Francisco a respeito dessa delicada questão. Depois de condenar os ataques em Paris, disse o seguinte:

“Eu acho que a liberdade religiosa e liberdade de expressão são ambos direitos humanos fundamentais”… “Todo mundo tem não só a liberdade e o direito, mas a obrigação de dizer o que pensa para o bem comum. Nós temos o direito de ter essa liberdade abertamente, sem ofender”.

E completou:

“Você não pode provocar, você não pode insultar a fé dos outros, você não pode zombar da fé”.

Na verdade, o termo  dignidade da pessoa humana passou a ter o devido valor ao ser mencionado no artigo primeiro  da Declaração Universal dos Direitos Humanos:

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.”  .

E o que é a ofensa, a zombaria senão a falta de espírito de fraternidade? Pensando bem, sem Fraternidade não há Igualdade e sem igualdade não pode haver Liberdade.