Opinião

“Questão de cor”, por Dell Santos

Dell-Santos.jpgOutro dia, lendo um dos livros do “Sítio do Pica-Pau Amarelo” para o meu filho, me deparei com uma daquelas repisadas frases de Monteiro Lobato, algo como: “Tia Anastácia é preta mas tem alma branca.” Qual não foi o espanto dele, mas então eu tive que explicar que a época era outra, a questão racial era vista de outra forma, enfim, e que é, de certa forma, um exagero o que algumas instituições tentaram fazer um tempo atrás, proibindo os livros de Monteiro Lobato. No entanto, ainda hoje não aprendemos a tratar a questão racial com toda a naturalidade com a qual deve ser tratada. As pessoas têm vergonha de dizer que desejam a supracitada alma branca, mas na verdade a tal alma branca é que continua a imperar sobre todas as nossas almas, fazendo com que, mais do que a alma, queiramos pintar nosso corpo de branco. Na época de Lobato ainda existia um imensurável esforço, iniciado em fins do século XIX e início do século XX, para branquear a população carioca, desprovendo a então capital das inumeráveis levas de negros que chegavam egressos das fazendas vizinhas ao Rio, recém-libertos pela abolição. As elites cariocas de então, que nas ruas se cumprimentavam em francês, não podiam admitir entre si tamanha negraria. E o exemplo ainda hoje se espalha por todos os cantos do mundo. É nítido que o povo que mais soube se impor aos outros povos foi o europeu. Não quero, com isso, vitimizar ninguém. Sabemos que não há povos bons ou povos maus, e que quando os europeus iam buscar escravos na costa ocidental da África eram muitas vezes os próprios negros, que já tinham escravos negros, que entregavam seus escravos aos brancos. O que muda, hoje, é que mais do que nunca a humanidade atinge um estado avançado de auto-conhecimento, de lucidez, o que impede que, nos dias correntes, deixemos de considerar que a história sempre foi contada pelo ponto de vista dos povos que “venceram”. Hoje, se quisermos ter uma visão imparcial, temos que nos afastar dessa distorção do relato histórico e abarcar a história de mais de uma perspectiva. E, que se frise, o que vale para a história vale para quase tudo. Os ditames da estética, os hábitos culturais, tudo, enfim, leva uma boa dose de distorção européia quando as coisas “se põem no balanço”. Notem, amigas e amigos, que o cinema indiano, hoje uma das maiores minas de ouro da sétima arte, ao por suas lindas celebridades para dançar quase sempre escolhe artistas que se assemelhem mais ao tipo europeu, embora na Índia predomine um povo bem mais escuro, por vezes até bem semelhante ao negro africano. E isso se repete mundo afora, com sul-coreanos querendo fazer cirurgia plástica para abrir mais os olhos, japoneses desenhando personagens de mangá com olhos enormes, etc.

Mas por que comecei com todo esse discurso? Simples. Quero chegar a algo que tem sido dito sobre a polêmica questão das cotas raciais. Ouço muita gente dizer que no Brasil a coisa mais difícil é determinar a raça de alguém. De fato. Dizem, então, que para conseguir as cotas os brancos podem, numa boa, se declarar negros também. E é sobre isso que quero falar. Até um tempo atrás o pior xingamento era chamar alguém de negro. Se hoje há brancos que querem se declarar negros, mesmo que por uma conveniência, isso, por um certo prisma, é até bom. Mostra que, nos dias de hoje, há também vantagens em ser negro. Sabemos, hoje, que a divisão do mundo entre longitudes ocidentais e orientais dar-se exatamente em Greenwich, um observatório na Grande Londres, se deve ao fato de terem os ingleses dominado quase

todo o mundo. Sabemos também que a raça humana se originou entre o Quênia e a Tanzânia e que, houvessem quenianos e tanzanianos dominado o mundo, talvez o Meridiano de Greenwich fosse Meridiano do Kilimanjaro, de Dar Es Salaam, de Zanzibar ou de Nairóbi, e quenianos jamais seriam confundidos com tanzanianos ou congoleses, assim como os ingleses não são confundidos com franceses ou tchecos. Que as pessoas saibam que somos todos afro-descendentes. Todos os seres humanos. Que tentem pleitear a afro-descendência. Não vejo inconveniente nenhum nisso. Será ótimo um mundo em que brancos pleiteiem sua condição negra. Em que mulatos se declarem negros, e o censo do IBGE pare com as distorções branqueadoras que sempre costumou haver. Ótimo. Sinal de que a humanidade está mais sensata e menos preconceituosa. É uma luz no fim do túnel, uma pequena mostra do que será a humanidade futura, quando estivermos num estágio muito mais avançado em que poderemos compreender que a alma de fato não tem cor, que a pigmentação de pele muda conforme o ser humano migra entre regiões de clima diferente, que ao fim e ao cabo brancos, negros, amarelos vieram todos de uma mesma gente e as etnias não têm nenhum limite rígido, e muito provavelmente a maioria da população terrestre é de raça indefinida, mesclada, como brasileiros, mexicanos, russos siberianos, cazaques, indianos, afegãos, sauditas, egípcios ou etíopes. Mas isso é um cenário futuro, que será bem melhor do que hoje, assim como o mundo de hoje já é melhor e mais lúcido do que o mundo de Monteiro Lobato. Hoje o que temos em mãos são instrumentos, mesmo que ainda não perfeitos, que nos permitem mitigar o problema do racismo. E as cotas são um desses instrumentos. É inegável, mesmo para quem se opõe a elas, que todos temos séculos de dívida para com os negros devido ao seu passado escravo. Temos que resolver isso de algum modo. É óbvio que distorções aparecerão. Por outro lado é também óbvio que se a Xuxa viesse pleitear para si uma cota por ser negra isso lhe seria negado. Por enquanto temos de usar essas ferramentas que temos em mãos, ainda que não perfeitas, tentando aprimorá-las ao máximo. E lutar para que a referida sociedade mais madura, em que ser branco, preto, amarelo ou azul com bolinhas cor de rosa (hehehe) será algo completamente irrelevante, chegue o mais cedo possível.

Amigas e amigos, isso era o que eu tinha a dizer. Forte abraço a todos e um bom dia da Consciência Negra.

 

Coordenadora de Eventos do Secretariado Municipal de Mulheres PSDB-SP.