Os últimos dias têm sido especialmente dolorosos para as mulheres brasileiras. Primeiro veio à público o caso de uma menina de 11 anos, grávida após ser vítima de estupro, que foi mantida em um abrigo e induzida pela juíza Joana Ribeiro Zimmer, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), a desistir de fazer um aborto legal e já autorizado. Alguns dias depois, a atriz Klara Castanho, de 21 anos, foi exposta por colunistas, o que a forçou a compartilhar sua história de gestação decorrente de estupro e sua opção pela entrega voluntária para adoção.
Duas histórias escabrosas que têm em comum a forma como as vítimas de estupro foram constrangidas violentamente por diversos meios. O que acende um alerta: a culpabilização das mulheres vítimas de violência é uma prática persistente no Brasil, e o pior, com anuência do poder público.
A Lei brasileira descriminaliza a realização do aborto em três casos: estupro, risco de vida materna ou má-formação fetal incompatível com a vida. Nessas hipóteses, não há limite de idade gestacional. Ainda assim, no caso ocorrido em Santa Catarina, vendo que a mãe da criança que engravidou em decorrência de um abuso sexual estava irredutível quanto à decisão do aborto legal, a magistrada Joana Zimmer tentou convencer a menina a levar a gestação até o final, e depois do nascimento entregar o bebê para adoção. Emparedou a vítima e a interrogou como se ela fosse a criminosa, em um ato cruel.
É perceptível que a saúde física e psicológica daquela criança não foram levadas em consideração. Especialistas concordam que a manutenção da gravidez em crianças vítimas de violência sexual pode acarretar uma série de problemas psicológicos, além de malefícios físicos, sociais e financeiros. Pode levar à morte. Afinal, o corpo de uma criança não está preparado biologicamente para carregar e conceber outra criança.
Casos como este nos faz lembrar que, apesar da descriminalização do aborto nessas situações ser antiga, já prevista no Código Penal de 1940, seu interesse, pelo menos a princípio, nunca foi preservar a vida ou a escolha das mulheres. A aplicação da Lei naquela época, no contexto de uma sociedade ainda mais patriarcal do que a que vemos hoje, não dizia respeito à concessão de um direito à mulher, mas sim à defesa da honra dos homens de sua família.
Voltando ao caso da atriz Klara Castanho. A artista, de apenas 21 anos, revelou ter sido vítima de um estupro, que a engravidou, o que a levou a tomar a decisão extremamente difícil de entregar o bebê para adoção, seguindo todos os trâmites legais. Sim. Foi tudo dentro do que prevê a Lei da Adoção, a qual permite a entrega direta de bebês e crianças para adoção pelas mães. A partir daí, Klara passou a sofrer ataques constantes, e viu sua privacidade e direito a sigilo serem violados de forma vil, não apenas por profissionais de saúde que deveriam acolhê-la, mas pelo sensacionalismo de figuras que buscam a promoção pessoal e pública a qualquer custo.
O que aconteceu com Klara Castanho nos convida a refletir. Afinal, por que os ataques contra ela? Por que os grupos contrários ao aborto, que defendem que a vítima de violência sexual dê à luz e entregue a criança para adoção, não ficaram satisfeitos com a decisão dela?
É curioso como a mulher é sempre julgada, não importa a decisão que tome. Se ela opta pelo aborto, a chamam de assassina. Se entrega para adoção, é desnaturada. Se está em conflito com a sua maternidade, é irresponsável. Se escolhe não ter filhos, é egoísta.
E se fosse um homem a tomar essas atitudes? Dificilmente passaria por estas mesmas situações de constrangimento. Até porque, o número de pais ausentes no Brasil só aumenta desde 2018. Entre janeiro e abril de 2018, aproximadamente 5,3% dos registros de nascimentos foram feitos apenas com o nome da mãe (51.176 de 954.869 documentos formalizados). Em 2020 e 2021, este índice passou para a casa dos 5,8% e 5,9%. No mesmo período em 2022, o percentual de pais que renegaram a paternidade saltou para 6,6%, o maior até agora.
Mesmo diante desses números, não vemos debates da sociedade cada vez mais conservadora – que têm ganhado força nos últimos anos amparada pelo fundamentalismo religioso e por um governo de extrema-direita que parece cultuar o masculino e desprezar as mulheres – sobre o assunto. O que nos leva a crer que, no Brasil de hoje, ser mãe é compulsório. Já ser pai é optativo.
*Solange Jurema foi a primeira ministra da Mulher do país, durante a gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso (2002). Procuradora aposentada do estado de Alagoas, é presidente de honra do Secretariado Nacional da Mulher/PSDB.