Opinião

“Vida e Orçamento”, por Yeda Crusius

A vida no planeta já havia sofrido uma mudança radical de rotina desde que a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu a pandemia do Coronavírus, em janeiro deste ano.

De lá para cá, não paramos de contar o número de corpos que enterramos em cerimônias cada vez mais solitárias: mais de 382 mil no mundo, entre 6,4 milhões de infectados, segundo estatísticas certamente incompletas.

Agora o estopim da explosão desse caldeirão em que a humanidade se encontra foi a morte do afro-americano George Floyd, em Minneapolis, nos Estados Unidos, no dia 25 de maio.

Floyd foi vítima da ação truculenta de um policial que manteve o joelho sobre seu pescoço, mesmo ouvindo o grito abafado: “I can’t breath! (Eu não consigo respirar!)”. O pedido de socorro ignorado virou grito de protesto na maior onda de manifestações contra o racismo registrada nos últimos 50 anos, traduzida pelo slogan “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam). A de George Loyd é uma delas, com nome e história.

E a vida de cada um daqueles que vem perdendo a batalha para a covid-19, dos quais não sabemos o nome e nem a história? Só nos EUA de George Floyd o número de contaminados está perto dos dois milhões e o de mortos está próximo de chegar aos 110 mil.

O valor da vida, as mulheres conhecem bem. Afinal, são elas que gestam, parem, e muitas cuidam dessas vidas. Cabe a elas – quando não exclusivamente a elas, cuidar e educar as crianças em casa e na escola, cuidar idosos e doentes em casa, nas clínicas e nos hospitais. E ao mesmo tempo trabalhando de modo formal ou informal, comprovadamente recebendo menos que homens nas mesmas funções, mas sustentando a casa.

Mas tudo indica que caminhamos não para uma pacificação do planeta. Pelo contrário, temo que a atual divisão acabe se acentuando com essa crise de grandes proporções. Há que agir.

 

As crises sanitária, econômica, política e social, todas juntas numa tempestade perfeita, parecem servir de combustível para a revolta que alcança agora as ruas. A soma da covid-19 com a morte violenta de um homem joga luz na grande transformação de valores que vivenciamos hoje sob isolamento.

Na tempestade perfeita se ilumina o merecido reconhecimento público que tantas mulheres vêm recebendo pela natureza de seu trabalho de cuidar de vidas: seja dentro de hospitais, onde representam 70% dos profissionais de saúde, seja em suas casas, com os filhos sem aula na escola, na ciência decodificando o genoma da covid-19, na gestão pública, ou onde mais elas estiverem.

Tanta dor deve ensinar a gemer. Alto nas ruas, e em cada célula social na nova rotina pós-coronavírus. Quem sabe, o novo normal do mundo consiga dar valor a cada vida, medida e transformada em novos orçamentos públicos, com novas prioridades que repartam responsabilidade e unam todos para a necessária mudança dessa sociedade violenta e desigual.

Cada vida vale. Às vezes, como em pandemias, não se pode saber o nome e contar a história de cada vida perdida. As mulheres estão cientes disso. É sobre elas, anônimas como os mortos da covid-19, que recai a maior parte do peso negativo das sociedades violentas e desiguais. No positivo, é com a ação e o trabalho delas que o mundo externo do cuidado com o outro recebe a senha para essa mudança. A ser realizada por todos.

*Yeda Crusius – Governou o Rio Grande do Sul, foi ministra do Planejamento e deputada federal por quatro mandatos. Atualmente, é presidente do PSDB-Mulher Nacional.