Ele abre a minha página do facebook, está na maioria das fotos espalhadas pela minha casa, em dezenas de outras no celular, vive na minha cabeça, é parte fundamental do meu coração. Também está gravado na minha pele, numa estrelinha feita no tornozelo para celebrar o seu nascimento. É quem mais me alegra e diverte na vida.
Ele é sua excelência, o Caio, meu neto de 11 anos. O que chegou primeiro. Um figuraço, eternamente bem humorado, pra quem não há tempo ruim – o que vier, ele traça, rindo.
E como ele mesmo conta: Eu sou down. Significa que o tal do nosso cromossomo 21 – o menor de todos – nele não vem em dupla, mas em trinca. Um a mais que faz a diferença.
Sem nenhuma idealização, no caso dos downs, a diferença é pra mais. Meio gente, meio anjos, eles são leves, disponíveis, doces, amorosos, solidários. O Caio é particularmente sagaz, engraçado, inteligente, sedutor e safadíssimo. Capaz de usar a diferença sempre a seu favor.
Não quer dormir no escuro e, seríssimo, argumenta: Os downs não podem dormir no escuro.
– De onde você tirou isso? E quem lhe disse isso?
– O médico, rebate mais sério ainda. Em seguida, cai na risada sabendo que a cascata do médico não vai colar. Pronto. Às gargalhadas, negociamos meia luz.
Tenta saber o preço de um brinquedo, mas a vendedora meio distraída não entende direito o que está falando. Capricha na emissão da voz e explica: Eu falo assim porque sou donw. To perguntando isso, aquilo e aquilo outro… Desconcertada, a vendedora se liga, presta atenção e entende tudo.
Dizia o Darcy Ribeiro, neto é filho com açúcar. Na minha vida de dois netos – além do Caio, agora há a delícia da Maria -, retifico: neto é paixão com açúcar demerara. Doce e forte, mas nada tóxica justamente porque não tem a ansiedade da outra paixão.
E, vamos combinar, a paixão é a melhor e mais intensa coisa da vida. Pois neto é melhor ainda.
Com poucas exceções, sentimentos de avós por netos são especiais e intransferíveis. Está assentado, não há novidade. Um down na família não é corriqueiro. E no primeiro take há o susto. Como assim? E agora? Como será ele? Como serei eu com ele? Como será a nossa vida? Como será a vida dele depois de nós?
A última indagação traduz o medo de como ele, assim diferente, enfrentará a vida, que não é fácil nem na trilha dos não diferentes?
E vem o tal de um dia atrás do outro e a diferença vai se diluindo na característica mais normal do mundo – cada um é um. E aquele seu um diferente vai lhe ensinando o que é ser normal. Muito simples: normal é a diferença.
Um filho não é igual ao outro. Os amigos também não. Um dia não é igual ao outro. Gente da mesma profissão ou atividade tem características diferentes. Tempos e ritmos de aprendizagem são diferentes. Cada um tem seu limite. Nem todos conseguem superar limites.
E aqui não tem nenhum jogo de palavras, nem um dourar a pílula. Conviver com um especial alarga os nossos limites, multiplica nossa generosidade, reduz os medos. Eles vão que vão vida adentro com todas as humanas expectativas, dificuldades e sonhos de qualquer um de nós.
Seu futuro é tão incerto quanto o de qualquer um. Concreto só o presente – bom ou ruim. Planos e projetos são planos e projetos. Alguns realizados. Outros não.
Na apaixonada convivência com o Caio perdi o medo. Ele está na quinta série. Lê, escreve e faz contas. Adora geografia e a escola. Nada muito e bem. É fera nos jogos eletrônicos e, como avalia, “mais ou menos no futebol”. Sabe tudo do Xbox. Usa muito bem seu tablet, frequenta o WhatsApp. Seduz todo mundo que chega perto dele. Tem amigos e amigas de várias idades.
Ganhei a certeza de que ele será o que quiser ser. No momento, quer “ser cantor, com fãs. Só mulheres”. Ou chef de cozinha. Ouve musica o dia inteiro. Decora letras, segue seus artistas preferidos nas redes sociais, canta nos karaokês. Ainda arrisca pouco com as panelas.
O pai dele queria ser jogador futebol e palhaço. O tio queria ser cantor e compositor. Os dois trabalham com TI. Eu queria ser aeromoça e arquiteta. Sou jornalista. Minha amiga, que queria ser juíza, é cantora. A outra queria ser médica e é. A vida…
Outro dia, num parque, uma menininha perguntou se o Caio era japonês. Ele mandou essa: Não, sua louca. Sou down. E vou ser cantor.
A ciência que me perdoe, mas tenho certeza: o tal do cromossomo 21 a mais é o do afeto. Experimente um abraço de um down e vai sentir a doçura em estado puro.
*Tânia Fusco é jornalista, mineira, mãe de três filhos e avó do Caio e da Maria