Quero ser a Hagadá de Sarajevo, a personagem principal de As Memórias do Livro, de Geraldine Brooks, para passear pelo Tempo como se livro fosse, vivendo do futuro para o passado. E, assim, eu iria escolhendo as minhas melhores fases, para vivê-las mais uma vez, bem devagar, como quem come o último pedaço de uma torta de maçã com sorvete de creme. Reviveria o primeiro beijo, o primeiro amor, o nascimento dos filhos, a conquista da própria percepção e – por que não? – também as dores do meu crescimento interno.
Quando saciada, eu iria ao futuro e me veria velha, na varanda, olhando para o mundo com a tranqüilidade dos que viveram seus desafios. Ou com a ironia dos que sabem que, no fim dos tempos, nada tem importância e o sofrimento é, muitas vezes, causado por pessoas que se levam demasiado a sério.
Claro que a Hagadá do romance não perereca de um ponto a outro de sua linha temporal. Ela é muito mais comportada do que eu seria. Sua história começa nos dias atuais, em Sarajevo, e vai recuando até a Sevilha do século XV. A vida do manuscrito é contada pelos que, em várias épocas, tiveram contato com ele. É a história do triunfo do conhecimento sobre o obscurantismo da força bruta, de até onde se pode ir, na defesa de um princípio, de um ideal.
Criado em um momento único, em que judeus,árabes e cristãos viviam em relativa tranqüilidade na Europa medieval, a Hagadá passa por muitas mãos e fases históricas e conta sua vida, misturada à dos que a possuem, pelo breve tempo de suas mortalidades.
Um romance irresistível para os que gostam de História, mas que agrada a todos, como pode atestar sua longa trajetória na lista dos mais lidos.
Memórias do Livro me deixou cismando no que seria de nós, humanos tolos, se pudéssemos contar nossas jornadas ao contrário. Se nos fosse permitido viver do fim ao começo, revivendo rotas, corrigindo rumos, depurando padrões, para chegar ao início com a sabedoria dos velhos nos olhos deslumbrados das crianças.
Se pudesse viver na ordem que quisesse, o que eu faria? Provavelmente tudo igual, já que me arrependo de muito pouco que fiz. Mas erraria com mais leveza, amaria com mais segurança, julgaria meus atos com menos severidade e olharia o outro com mais atenção do que me lembro de ter feito, quando menina.
E me daria mais, por ter aprendido que isso não me anula, que quanto mais me reparto, quanto mais riscos corro nesta partilha, mais inteira volto a minhas mãos.
*Beatriz Ramos é cronista