A falta de acesso regular a uma alimentação adequada por grande parte da população brasileira tem sido um dos principais desafios enfrentados pela sociedade ao longo dos últimos anos. O país havia saído do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2014, por meio de estratégias de segurança alimentar e nutricional aplicadas desde meados da década de 1990. Mas voltou a figurar no cenário a partir de 2015, obtendo um especial agravamento ao longo da pandemia de Covid-19 que afetou o mundo todo por dois anos a partir de 2020.
Em 2022, o Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil apontou que 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer — o que representa 14 milhões de novos brasileiros em situação de fome. Conforme o estudo, mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau: leve, moderado ou grave.
Projetos de lei em tramitação no Senado buscam atenuar esse quadro. É o caso do PL 354/2022, apresentado pelo senador Rogério Carvalho (PT-SE), que institui o chamado Benefício de Erradicação da Fome, no valor de R$ 250, a ser pago a famílias em situação de extrema pobreza, quando houver insegurança alimentar leve, moderada ou grave no país. A proposição modifica a Lei 14.284/2021, que instituiu o Programa Auxílio Brasil e o Programa Alimenta Brasil. Além dela, o PLC 104/2017, de autoria do Deputado Federal Arnaldo Jardim (Cidadania-SP), relatado pelo senador Alessandro Vieira (PSDB-SE), institui a Política Nacional de Erradicação da Fome.
Presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDH), o senador Humberto Costa (PT-PE) acredita que medidas como essas ajudam a minimizar a situação. Para o parlamentar, é preciso ampliar os recursos destinados às políticas de segurança alimentar e intensificar os programas de transferência de renda já existentes, com aumento dos valores repassados e do número de contemplados:
“Além disso, ações para o crescimento econômico da nação [precisam ser adotadas]. Recursos para empregos, particularmente, na infraestrutura, na construção civil, que geram trabalho qualificado e em curto espaço de tempo”.
Ação política
Os dados do Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, divulgados em junho, foram coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022, por meio de entrevistas em 12.745 domicílios em áreas urbanas e rurais de 577 municípios distribuídos nos 26 estados e no Distrito Federal. Pesquisa anterior, de 2020, mostrava que a fome no Brasil tinha voltado para patamares equivalentes aos de 2004. A piora no cenário econômico, o acirramento das desigualdades sociais e o segundo ano da epidemia do coronavírus agravaram a situação.
Para a senadora Zenaide Maia (Pros-RN), nada é mais preocupante e urgente do que acabar com a fome de milhões de brasileiros. Na avaliação dela, o governo federal desmontou um importante arcabouço de proteção social, tornando necessária a reconstrução das políticas públicas para essa área. Além de um projeto de geração de emprego e renda, Zenaide pondera no sentido de que o país precisa de mais investimento público e de ações para a valorização do salário mínimo como formas de diminuir os números da fome no Brasil.
“Também precisamos voltar a priorizar o financiamento de agricultores familiares e retomar a formação de estoques de alimentos para evitar os preços nas alturas. Investimentos públicos para a geração de emprego e renda e uma política de valorização do salário mínimo, tudo a gente já teve e precisa resgatar, porque são políticas públicas que salvam vidas”, defende Zenaide.
Na opinião do senador Fabiano Contarato (PT-ES), o combate à fome é uma medida prioritariamente política, que requer engajamento das autoridades.
“A insegurança alimentar precisa ser combatida com políticas públicas eficientes, integradas e com reforço orçamentário e vontade política de trabalhar com o setor privado, a sociedade civil e governos estaduais e municipais. Temos de devolver dignidade ao povo brasileiro, com emprego, prato de comida na mesa, filhos na escola, esperança de futuro”, pontua.
Para o senador Dário Berger (PSB-SC), enfrentar o problema da fome precisa ser a prioridade do governo:
“É fundamental estender a mão para as pessoas que mais precisam, oferecendo políticas públicas humanitárias, gerando oportunidades, fortalecendo programas sociais e de retomada do emprego. Só assim mudaremos essa triste e dura realidade”.
Dia Mundial da Alimentação
A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) instituiu 16 de outubro como o Dia Mundial da Alimentação, no intuito de promover uma reflexão mundial sobre o assunto. Em 2009, o Congresso Nacional aprovou a Lei 12.077, que estabelece 16 de outubro como o Dia Nacional da Alimentação. A finalidade é mobilizar o poder público e conscientizar a sociedade brasileira sobre a importância do combate à fome e à desnutrição, bem como autorizar órgãos públicos responsáveis por essas políticas a desenvolverem atividades educativas e de estímulo à participação social. Na data seguinte, 17 de outubro, celebra-se o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza — instituído também pela Assembleia Geral da ONU em 1992.
No dia 19, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) realiza o seminário Dia Mundial da Alimentação – O princípio de não deixar ninguém para trás. A proposta do evento é refletir sobre os avanços, retrocessos e estratégias para atingir os compromissos globais assumidos em 2015 em relação aos Objetivos de desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, de modo a “erradicar a fome, a pobreza, garantir a paz e permitir à população mundial uma vida digna e plena com sustentabilidade para o planeta”.
A programação conta ainda com lançamento do e-book “Receitas de família — incentivando uma alimentação adequada e saudável a partir do consumo de frutas, legumes e verduras: a experiência no território do Distrito Federal”, elaborado por meio da parceria entre o Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares (OBHA) da Fiocruz Brasília, e as secretarias de Saúde (SES/DF) e de Desenvolvimento Social do Distrito Federal (Sedes/DF).
Enquanto organismos internacionais e nacionais tentam estimular passos à frente na luta contra o deficit nutricional, o Brasil recua. Numa análise do consultor legislativo do Senado Henrique Salles Pinto, o panorama da fome no Brasil mostra que o país regrediu a um patamar equivalente ao da década de 1990. De acordo com o especialista, mesmo o fato de sermos o segundo maior exportador de alimentos do mundo no ranking da Organização Mundial do Comércio (OMC) não tem sido suficiente para erradicar o problema no território nacional. Henrique acredita que essa situação poderia ser mudada se não houvesse tanto desperdício de alimentos no país.
“De fato, em todo o território nacional, 39 mil toneladas de comida em condições de serem aproveitadas vão para o lixo diariamente em mercados, feiras, fábricas, restaurantes, quitandas, açougues e fazendas. O número leva em conta dados de vários setores: agricultura, indústria, varejo e serviços. São vários alimentos como iogurtes perto do vencimento, tomates manchados, pães “amanhecidos”, carne esquecida no congelador e milhares de itens que, por diversas razões, acabam descartados. Tamanha quantidade é suficiente para prover três refeições diárias a, aproximadamente, 19 milhões de pessoas”, dimensiona Henrique Salles.
A melhoria das leis
O Congresso Nacional tem iniciativas de combate à fome que vão desde o amplamente difundido aumento do valor do Auxílio Brasil (antigo Programa Bolsa Família) para R$ 600, instituído pela Lei 14.284/2021, à Lei 14.016/2020, que autorizou supermercados, restaurantes e outros estabelecimentos dedicados à produção e fornecimento de alimentos a doar os excedentes para pessoas em situação de vulnerabilidade ou de risco alimentar ou nutricional. Por essa norma, os alimentos ou refeições não comercializadas podem ser doados, desde que próprios para o consumo humano.
É fato que a Lei 14.016 ajudou a modernizar a legislação, garantindo mais segurança jurídica ao ato de doação, seja para o doador, seja para as famílias a serem beneficiadas. O consultor legislativo observa, no entanto, que medidas assim só são efetivas, levando essa comida ao prato dos brasileiros, quando indústrias, mercados e restaurantes estão dispostos a doar seu excedente aproveitável e as instituições, públicas ou privadas, estabelecem sistema de logística para recolher doações e as destinam a quem delas precisa, antes de o alimento estragar.
“É uma solução, aparentemente simples, mas que esbarra em entraves culturais e técnicos. Poucas são as empresas que doam comida: a maioria prefere descartar o excedente. O principal motivo é evitar problemas legais, como [o de] arcar com a responsabilidade criminal no caso de a comida doada causar intoxicação em alguém”, explica o consultor.
Aumento de estoques
Um tema que apresenta relação direta com o combate ao desperdício de alimentos diz respeito às estratégias de estoques de produção. Para Henrique Salles, o estímulo ao armazenamento poderia ser alcançado complementando-se a lei que instituiu o Alimenta Brasil. Isso porque, segundo ele, uma alteração no artigo 39 da Lei 14.284/2021 permitiria à Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), no âmbito das operações do Programa Alimenta Brasil, continuar articulando-se junto a cooperativas e demais organizações formais da agricultura familiar, inclusive com a apresentação de metas de ampliação de seus estoques públicos para o alcance dos objetivos do Alimenta Brasil, nos termos de regulamento. A modificação da lei, no entanto, cabe a senadores e deputados.
Outro assunto frequente nos debates do Congresso, conforme o consultor, refere-se a medidas financeiras para agricultores (principalmente familiares) aumentarem sua produção e destinarem essa produção a pessoas de baixa renda. Ele citou como referências a Lei 11.326/2006, que estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais, e a Lei 14.284/2021, que concede auxílio financeiro aos agricultores familiares brasileiros, de modo a auxiliá-los em suas atividades produtivas.
“Garantir recursos suficientes no Orçamento da União para o referido programa ao longo dos próximos anos deve ser uma das prioridades dos parlamentares brasileiros. Nesse mesmo sentido, a garantia de, no mínimo, R$ 600 mensais às famílias inscritas no Auxílio Brasil é fundamental para reduzir os índices de insegurança alimentar e nutricional no país, lembrando que esse valor está previsto apenas até dezembro de 2022”, alerta o consultor do Senado.
Propostas legislativas
Entre os textos legislativos que tramitam no Senado, há peças como o PL 354/2022, que pretende instituir o Benefício de Erradicação da Fome, no valor de R$ 250, a ser pago a famílias em situação de extrema pobreza, quando houver insegurança alimentar leve, moderada ou grave no país; bem como criar o pagamento da 13ª parcela desse programa, em dezembro de cada ano. Do senador Rogério Carvalho (PT-SE), a proposta modificaria a Lei 14.284/2021, que instituiu o Programa Auxílio Brasil e o Programa Alimenta Brasil. O texto aguarda designação de relator.
Segundo a Nota Técnica de Impacto Orçamentário e Financeiro 3/2022, elaborada pela Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado, o impacto da medida seria de R$ 49,6 bilhões em 2022; de R$ 58,7 bilhões a R$ 61,0 bilhões em 2023; e de R$ 58,7 bilhões a R$ 63,1 bilhões em 2024. Esses números incluem a previsão de uma 13ª parcela desse benefício em dezembro, optando-se pela aplicação — ou não — do índice correspondente ao IPCA projetado do período anterior, de modo a preservar seu valor real. Quanto à 13ª prestação do Programa Auxílio Brasil (exclusive o Benefício de Erradicação da Fome), a estimativa do impacto alcançaria R$ 4 bilhões para 2022; de R$ 4 bilhões a R$ 4,2 bilhões para 2023; e de R$ 4 bilhões a R$ 4,4 bilhões para 2024, a depender da aplicação ou não do índice de correção do valor médio dos benefícios.
Também aguarda seguimento de tramitação na Casa o PLC 104/2017, que institui a Política Nacional de Erradicação da Fome. Já aprovada pela Câmara dos Deputados, a proposta estabelece a função social dos alimentos, que é cumprida quando os processos de produção, beneficiamento, transporte, distribuição, armazenamento, comercialização, exportação, importação ou transformação industrial tenham como resultado o consumo humano de forma justa e solidária.
O texto tem relatoria do senador Alessandro Vieira (PSDB-SE) e será analisado pelas comissões de Assuntos Econômicos (CAE), Direitos Humanos (CDH) e de Agricultura (CRA), antes de ir a Plenário.
*Da Agência Senado