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“Um jeito de não sentir dor”, por Mara Gabrilli e Henderson Fürst

Foto: Agência Câmara

Em artigo publicado nesta quarta-feira (16/6) pelo jornal O Globo, a senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP) e o presidente da Comissão de Bioética da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Henderson Fürst, discutem sobre o uso medicinal da Cannabis e o alívio que esses medicamentos podem trazer a pacientes que sofrem com doenças crônicas e neuropáticas.

Eles pedem a aprovação do PLC 399/2015, que possibilita a produção nacional dos insumos necessários aos tratamentos com recomendação baseada em evidências científicas. “O tabu e a politização que envolvem o tema não podem ser maiores que o direito fundamental à saúde”, escrevem.

Leia a seguir a íntegra do artigo publicado pelo jornal O Globo:

Como nos versos de Cazuza, inúmeros pacientes brasileiros sonham acordados “um jeito de não sentir dor”. Não apenas, para os que sofrem de dores crônicas e neuropáticas, de aliviá-las, mas também de obter melhoras no bem-estar e na saúde, para pacientes com epilepsia, câncer, doenças neurológicas degenerativas, autismo, doenças raras, transtornos pós-traumáticos e tantos outros quadros em que, dia após dia, evidências científicas comprovam a eficiência do uso medicinal da Cannabis.

Lamentavelmente, no atual panorama da legislação brasileira, o acesso terapêutico a medicamentos à base de Cannabis se dá ou (i) pela importação da matéria-prima ou do medicamento, conforme as regras da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 327/2019 da Anvisa, mediante valores que inviabilizam a produção nacional e o acesso ao tratamento para muitas famílias; ou (ii) por autorização judicial para o cultivo artesanal para extração de canabidiol (CBD); ou ainda (iii) por meio das poucas associações que dispõem de autorização judicial para isso. O cultivo da Cannabis para fins medicinais é indevidamente enquadrado como crime pela Lei de Drogas — um paradigma desatualizado em relação às melhores práticas de saúde pública que diversos países adotaram, como Alemanha, Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, Holanda, Israel, Jamaica, Reino Unido, República Tcheca, Uruguai e EUA, em alguns dos estados federados.

Muito embora a RDC 327 autorize a importação do CBD para a produção de medicamento, a possibilidade exclusiva de acesso apenas pelo exterior deixa pacientes e mercado interno à mercê do câmbio e dos interesses do mercado internacional. E já aprendemos duramente com a pandemia quão vulneráveis ficamos quando não privilegiamos a ciência, a tecnologia e o mercado nacional.

A Constituição determina, sem qualquer margem de dúvida, que “a saúde é direito de todos e dever do Estado” (art. 196). E, para tantos pacientes, orientados pela melhor prática médica da saúde baseada em evidências, esse direito só será possível pelo acesso à Cannabis medicinal. Tramita hoje no Congresso o Projeto de Lei da Câmara 399/2015, que estabelece o marco regulatório da Cannabis spp. no Brasil, para fins exclusivamente medicinais e industriais.

Por ocasião desse debate nacional — inadiável e urgente, por ser questão de saúde — , observamos manifestações que expressam o receio da “liberação da maconha”. Trata-se, na verdade, de ignorância ou pura falta de empatia com os milhares de pacientes que necessitam de tratamento à base de Cannabis. Isso porque o PLC 399/2015 não apenas estabelece rigorosos mecanismos de controle e vigilância, como também, entre as variedades de Cannabis, existe o cânhamo, cujo teor de THC é insuficiente para qualquer destinação psicotrópica.

Além disso, importa lembrar que a Constituição determina, no artigo 219, que “o mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do país”. É, portanto, imperativa a aprovação do PLC 399/2015, possibilitando a produção nacional dos insumos necessários aos tratamentos de inúmeros quadros crônicos com recomendação baseada em evidências científicas.

O tabu e a politização que envolvem o tema não podem ser maiores que o direito fundamental à saúde. Cabe, assim, lembrarmos as palavras de Ulysses Guimarães que acompanharam os primeiros exemplares impressos da Constituição pelo Senado Federal: “É a Constituição Coragem. Andou, imaginou, inovou, ousou, ouviu, viu, destroçou tabus, tomou partido dos que só se salvam pela lei”. A regulamentação da Cannabis medicinal no Brasil, pela aprovação do PLC 399/2015, é a esperança de pacientes e a coragem necessária neste momento para efetivar o direito fundamental à saúde dos mais vulneráveis, que só se salvam pela lei.

*Mara Gabrilli é senadora (PSDB-SP) e integrante do Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU.

**Henderson Fürst é presidente da Comissão Especial de Bioética da OAB Nacional e professor de Direito na PUC-Campinas.

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