As formas de se conceituar pobreza e desigualdade acabam determinando diferenças fundamentais na concepção de políticas públicas, destinadas a enfrentar estes problemas. Assim, o refinamento dos conceitos se reflete em uma evolução nos desenhos destas políticas.
A análise do processo nos permite identificar cinco gerações de políticas de enfrentamento à pobreza, que buscam avançar, no sentido de obter maior impacto.
Pode-se notar que as propostas vão mudando seu foco, passando do indivíduo para a família e para a comunidade, além de demandarem instrumentos cada vez mais refinados para sua implantação. Vão também ganhando complexidade e, em função da ideia de multidimensionalidade, passam a exigir uma abordagem cada vez mais intersetorial e colaborativa.
Primeira geração
A primeira geração de políticas restringe-se à distribuição de bens materiais e alimentos. Isto porque, como já foi dito, o problema (natural) é visto através de seus sintomas, como a falta de acesso a estes produtos.
O foco é no indivíduo e sua implantação demanda apenas a criação de um sistema de distribuição, para que cestas básicas, roupas ou utensílios cheguem até os indivíduos pobres, em situação de vulnerabilidade social ou afetados por algum tipo desastre natural (enchentes, secas, terremotos, tufões, tsunamis), sanitário (epidemias, pandemias) ou social (conflitos, guerras).
O principal desafio é a logística de distribuição para alcançar os beneficiários. Além do custo, em muitos casos torna-se necessária a utilização de um intermediário (prefeituras, lideranças comunitárias ou organizações religiosas) que, não raro, definem critérios de distribuição baseados em seus próprios interesses.
Vale ressaltar que, em uma situação de emergência, quando se torna impossível o acesso à comida ou a bens de consumo básico, esta pode ser a única forma viável de atender rapidamente aos mais atingidos.
Um importante aspecto negativo de políticas públicas (não emergenciais) que fazem parte desta geração, no caso de compras centralizadas, é o de acabar inibindo a produção e o comércio locais.
Uma modalidade deste tipo de proposta, que busca enfrentar tal “efeito perverso”, é a distribuição de “vales” para serem utilizados no mercado local. O problema é que muitas vezes é definido um cardápio de produtos “permitidos” para esta compra.
Por trás desta limitação está a ideia de que pobre não sabe gerenciar seu dinheiro e que vai utilizá-lo preferencialmente na compra de cachaça ou cigarro, ao invés de comida para a família.
Por outro lado, a definição de um cardápio de itens permitidos não leva em consideração que uma família pode ter prioridades diferenciadas, como por exemplo a aquisição de fraldas ou de material de limpeza.
Interessante notar que ainda hoje, tanto em uma situação de emergência, quanto no desenho de uma política pública, voltada para os mais pobres, a primeira proposta seja a de distribuir comida para matar a fome, ou seja, de se alcançar o ideal da “fome zero”. Quando assumi, pela primeira vez, a gestão pública de assistência, na cidade do Rio de Janeiro, em 1993, a proposta central, tanto em nível federal, com o Comunidade Solidária, quanto municipal, era o combate à fome, por meio da distribuição de cestas básicas. A estratégia teve uma primeira evolução, com o estabelecimento de uma parceria, entre a Comunidade Solidária e a SMDS, para a composição da cesta. A Comunidade Solidária contribuía com os não perecíveis e a SMDS com alimentos proteicos. Mas o fato mais importante foi a proposta de associar esta oferta à permanência de crianças na escola. A distribuição, ao invés de ser feita nas comunidades, acontecia na própria escola. Foi estabelecida a condicionalidade da frequência escolar, visando o aumento do capital humano e a possível superação da pobreza em longo prazo. Tratava-se dos primórdios de uma lógica típica do que chamaremos de “terceira geração”, constituindo-se na pré história do Bolsa Escola.
Segunda geração
As transferências monetárias não condicionadas constituem uma segunda geração de política de enfrentamento à pobreza. As primeiras iniciativas nesta linha foram o Benefício de Prestação Continuada (BPC), a Aposentadoria Rural e a Renda Mínima. As duas últimas, apesar de consideradas do campo da previdência, constituíam propostas assistenciais, por seu caráter não contributivo.
Esta geração já supera a ideia de fenômeno natural e focaliza sua intervenção nas causas econômicas, e não apenas nos sintomas da pobreza.
O foco ainda é o indivíduo. No caso do BPC, são idosos e pessoas com deficiência. O repasse de renda é feito diretamente ao beneficiário, por meio do sistema bancário, sem intermediários. Este processo já passa a demandar a implantação de um cadastro de beneficiários, sendo que estes necessitam estar documentados.
Aliás, os programas de transferência de renda, utilizando o sistema bancário, tiveram um papel fundamental na diminuição do número de indocumentados no Brasil. Como já comentado anteriormente, foi organizado, em 2001, um grande mutirão, envolvendo a assistência, o judiciário e as gestões municipais, para documentar a população dos municípios mais pobres. Esta ação intersetorial, denominada “Brasil com Nome e Sobrenome” foi um verdadeiro passaporte para inclusão dos mais vulneráveis na Rede de Proteção Social.
Nesta geração, não existe, ainda, a intenção de diminuir ou superar a pobreza. Ela se propõe apenas a oferecer o mínimo de recursos financeiros necessários para garantir a sobrevivência do indivíduo pobre ou vulnerável.
Poderíamos incluir, nesta geração, a proposta de Renda Mínima Universal, defendida pelo ex senador Eduardo Suplicy, que propõe a transferência não condicionada de recursos para toda a população. Aqueles que não necessitassem destes recursos deveriam devolvê-los ao tesouro, através do imposto de renda.
Terceira geração
As Transferências Condicionadas de Renda (TCR) são os ícones da terceira geração de políticas públicas de superação da pobreza.
O primeiro traço evolutivo encontra-se na mudança de foco, que passa a ser a família, e não mais o indivíduo. O beneficiário prioritário passa a ser a mulher (mãe da família).
Com isto, firma-se a ideia de que a família é unidade básica de produção e de consumo, e que tem na mulher a centralidade de sua dinâmica de funcionamento.
O segundo avanço é o compromisso de buscar saídas, em longo prazo, promovendo o aumento do capital humano das famílias, através da garantia do acesso, das crianças e jovens, aos serviços de saúde e educação, através das condicionalidades.
Esta geração demanda a criação de um Cadastro Único das Famílias Pobres e uma ação intersetorial, pelo menos para o controle das condicionalidades.
Estudos sobre programas de Transferência Condicionada de Renda identificam impactos significativos na diminuição pobreza e da desigualdade.
No Brasil, são encontrados também impactos na educação, com o aumento da frequência (beneficiários 82,3% e média nacional 80,5%) e a diminuição do abandono, especialmente no Ensino Médio (7,2 entre os beneficiários, 14,3% na média nacional).
Na saúde, foi detectado um aumento na porcentagem de crianças de até 6 meses alimentadas exclusivamente por amamentação e de crianças com calendário de vacinação em dia, além da redução das taxas de hospitalização entre menores de 5 anos.
Quarta geração
Já na quarta geração, as Transferências Condicionadas de Renda evoluem no sentido da busca de saídas em curto prazo, através de sua associação com programas de desenvolvimento integral, voltados, tanto para a unidade familiar, quanto para seus membros, em diferentes etapas do ciclo de vida.
Muito importante, na quarta geração, é a função de um Promotor Social de Famílias, exercida por profissional de assistência social. Este promotor seria responsável por apoiar as famílias na elaboração de um Plano de Desenvolvimento Familiar (com metas e prazos), por encaminhá-las para os serviços necessários, por desenvolver, com elas, um programa socioeducativo e por acompanhar o processo de promoção e “graduação” de cada uma.
Para isto, além do Cadastro Único das Famílias Pobres – CadÚnico (mapa da demanda), seria necessário construir um Sistema Integrado de Informações sobre Programas e Serviços existentes, por iniciativa de diferentes atores sociais (mapa da oferta).
Este profissional deveria dispor de instrumentos de avaliação do processo, para identificar as possibilidades de “graduação” (autonomia, saída do programa) das famílias.
A quarta geração é essencialmente intersetorial e multissetorial, tanto no controle das condicionalidades, quanto na oferta dos serviços. Intersetorial, no sentido de envolver diretamente as áreas de assistência, educação, saúde e trabalho. Multissetorial por demandar a articulação entre atores sociais: diferentes níveis de governo, organizações da sociedade civil e empresariado.
A associação entre o Bolsa Família e o Brasil sem Miséria representou importante passo no sentido da incorporação de características típicas da quarta geração. Dados do Cadastro Único eram utilizados no planejamento, acompanhamento e avaliação de outros programas de superação da pobreza. Os membros das famílias pobres tinham acesso privilegiado a serviços e programas, que incluíam: vagas para cursos de qualificação profissional, serviços de assistência técnica e extensão rural, acesso à água e tarifas reduzidas de energia elétrica. Outros benefícios monetários (Bolsa Verde e Fomento Agrícola) utilizavam o cartão do Bolsa Família para fazer a transferência. Além disto, era feito um repasse financeiro para municípios atenderem, em creches, a crianças de famílias beneficiadas. Um grande avanço, sem dúvida, da administração petista na área social!
Quinta geração
Finalmente, tendo em vista que o processo de promoção sustentável de uma família pobre depende do desenvolvimento de seu entorno, uma quinta geração de programas de superação da pobreza, introduz mais um elemento: o desenvolvimento local integrado.
Para isto, além do Promotor de Desenvolvimento Familiar, é necessária a contribuição de mais um elemento: o Promotor de Desenvolvimento Local.
Este profissional seria o responsável por apoiar a elaboração de um Plano de Desenvolvimento Local, bem como por promover a mobilização e articulação de fontes de recursos (humanos e financeiros), e o estabelecimento de Parcerias Multissetoriais.
A equipe responsável pela implantação do plano deveria dispor de um instrumento de aferição e acompanhamento do processo de desenvolvimento local, para seu aperfeiçoamento.
O infográfico abaixo dá uma visão geral dos principais componentes da quinta geração de programas de superação da pobreza.
Esta proposta inclui, portanto, além da transferência de renda e da promoção das famílias (quarta geração), ações voltadas para o desenvolvimento social, econômico e ambiental do território, bem como para a melhoria de sua infraestrutura.
Demanda também uma gestão colaborativa para a concepção, implantação e acompanhamento do Plano de Desenvolvimento Local, alicerçada em uma parceria intersetorial e multissetorial.
Resumindo, poderíamos dizer que a quinta geração de políticas públicas deveria estar voltada não apenas para o alívio dos sintomas da pobreza (primeira geração), para a redução de suas causas (segunda geração), para a sua superação, em longo prazo (terceira geração) ou em curto prazo (quarta geração), mas essencialmente para a sustentabilidade desta superação. Superação para aqueles que se encontram na situação de pobreza, mas também proteção para aqueles que podem estar se equilibrando no limite, mas são extremamente vulneráveis a crises idiossincráticas ou conjunturais.
E o Bolsa Família?
Pode-se supor que o aperfeiçoamento do Bolsa Família, na busca do aumento de seu impacto, poderia ser feito no sentido incorporar algumas características da quinta geração de políticas públicas de superação da pobreza. Para isto, seria necessário:
– Integrar os programas assistenciais de transferência de renda existentes, como forma de dar organicidade a uma Rede de Proteção Social Ampliada;
– Transformar o CadÚnico no instrumento básico desta Rede de Proteção Social Ampliada, incluindo, tanto as famílias pobres e extremamente pobres (beneficiários do Bolsa Família), quanto outros grupos vulneráveis, representados por desempregados, empregados informais, micro e pequenos empresários;
– Criar uma modalidade “emergencial” do Bolsa família, de caráter temporário, voltada para os grupos vulneráveis não contemplados pelo programa, a ser acionada em momentos de grave crise econômica, social ou ambiental;
– Utilizar o CPF como identificação básica do CadÚnico e dos demais programas de promoção social, de forma a permitir o cruzamento de dados e o acompanhamento dos beneficiados (universalizar o CPF);
– Reforçar a ideia da necessidade de um tempo determinado (mas flexível) para que as famílias beneficiadas pelo Bolsa Família ganhem autonomia e migrem para um programa subsequente, possivelmente baseado no crédito, associado à assistência técnica;
Por trás desta proposta está a crença de que as famílias pobres desejam superar sua situação de pobreza, e que são capazes desta façanha, desde que lhes sejam oferecidos os instrumentos para que isto aconteça.
– Utilizar a metodologia dos ciclos de vida para a concepção, aperfeiçoamento e integração de Programas Intersetoriais de Promoção Social, priorizando as faixas da Primeira Infância e da Juventude;
– Definir o território como unidade de desenvolvimento e superação da pobreza, introduzindo a proposta do Desenvolvimento Local Integrado e promovendo a criação de parcerias multissetoriais locais.
Enfim, compreender o processo evolutivo das políticas públicas de superação da pobreza e desigualdade, bem como os referenciais teóricos que as orientam, é de suma importância, para avançarmos na busca de maior impacto, e livrar-nos do perigo de retrocessos, totalmente indesejáveis.
Estamos próximos ao final da Temporada 1. No próximo episódio, vamos falar sobre o fechamento do ciclo de atuação no Governo Federal (1999 a 2002), incluindo o reconhecimento interno e externo do trabalho realizado. Falaremos também sobre o day after, ou seja, os rumos assumidos pela política de enfrentamento à pobreza, a partir de 2003. Não percam!
Fonte: Blog Wanda Engel