Logo após o presidente Fernando Henrique Cardoso aprovar a proposta do Cadastro Único (CadÚnico), formou-se um grupo de trabalho, constituído pelos ministérios da Educação, Saúde e da Casa Civil, coordenado pela Secretaria de Estado de Assistência Social (SEAS), com a missão de operacionalizar a ideia.
A Casa Civil, sob a competente liderança de Ana Lobato, era a responsável técnica pela concepção do instrumento cadastral e do mecanismo de transferência bancária dos recursos financeiros para as famílias.
O agente bancário escolhido foi a Caixa Econômica Federal, que passou a atuar, junto com a Casa Civil, na montagem do sistema. Nossa representante neste grupo era Leila Chnaiderman Aquilino que tem a seguinte lembrança deste momento:
Lembro de Wanda Engel, me dizendo: Amanhã temos uma reunião na Casa Civil da Presidência da República. Eu retruquei: Sim, senhora Secretária, e ela prosseguiu: Então temos que pensar em um único cadastro para essas famílias. Cada Ministério tem um, para “abrigar” as famílias (que poderiam ser as mesmas em todos os cadastros), com perguntas semelhantes, (ou praticamente iguais). E Wanda Engel me disse: Marcelo Garcia, me contou que você já trabalhou com pesquisas. Então veja os cadastros existentes e pense em um único que abarque todas as áreas. Eu perguntei: Para quando??? Isso aconteceu às 17 horas, e ela respondeu: Para amanhã, às 09 horas. E assim nasceu a primeira versão do Cadastro Único.
A dúvida inicial era se o foco do cadastro seria o grupo dos beneficiários dos programas de transferência existentes, ou todas as famílias pobres brasileiras. Venceu a segunda opção.
Assim, o CadÚnico abrangeria o universo as famílias pobres, coletando dados capazes de construir um verdadeiro “retrato” dessas famílias, ou seja, como eram constituídas, onde viviam, quais eram suas características socioeconômicas.
O CadÚnico possibilitaria também a identificação de suas necessidades específicas, o que daria insumos para um planejamento mais efetivo dos serviços necessários ao atendimento das demandas. Seria capaz, também, de identificar famílias não atendidas ou sobreposições de atendimento. Tudo de bom!
Entretanto, cada um dos programas já tinha seu próprio cadastro, e os gestores não queriam abrir mão dele, considerando que um novo instrumento retardaria o processo de implantação já em curso.
A solução foi a criação de uma versão que contivesse todos os dados de cada um dos cadastros já existentes. Ou seja, um tipo de “cadastro Frankenstein”. Assim, o trabalho seria somente o de complementação do cadastro original.
As resistências para a implantação do novo instrumento foram tão fortes, que foi necessário um decreto presidencial, datado de 24 de julho de 2001.
O decreto instituía o CadÚnico, definia os programas de transferência que deveriam utilizá-lo (isentava do seu uso o BPC e programas emergenciais), identificava obrigações para os gestores e, o mais importante, tornava-o obrigatório a partir de 15 de setembro daquele ano.
A saga da implantação do CadÚnico
Para início de conversa, não havia dotação orçamentária para a implantação do CadÚnico. Somente o cadastro da saúde (CadSUS) dispunha de recursos, oriundos de um empréstimo com o BID, que garantia R$ 0,60 por cadastro preenchido. Como o CadÚnico continha todos os dados do CadSUS, ele também fazia jus a este recurso. Viva!
Havia também de que se decidir quem seria o responsável operacional pelo cadastramento. Outros países, como a Colômbia e o Chile, haviam utilizado a estratégia censitária, com visitas aos domicílios para identificação dos “próxis” de pobreza (condições do domicílio, posse de eletrodomésticos, mobiliário). Tratava-se de um processo caro e demorado.
Muito em função de minha experiência com o programa de cesta básica para manutenção de crianças na escola, na prefeitura do Rio de Janeiro, no qual a definição das famílias pobres, balizada em dados estatísticos, havia ficado a cargo das diretoras, decidiu-se utilizar uma estratégia parecida.
Assim, a identificação das famílias ficava a cargo das prefeituras, tomando por base os dados do censo com relação à quantidade de famílias pobres no município. Era, portanto do município a responsabilidade pelo processo de cadastramento.
Como motivar as prefeituras?
Apesar do incentivo financeiro (R$ 0,60 por família cadastrada), os prefeitos se mostraram temerosos de efetivar o cadastro de uma família, sem que esta tivesse garantido seu acesso a algum tipo de benefício.
Neste momento surge o chamado Auxílio Gás. Havia um subsídio universal para o gás de cozinha, ou seja, até as famílias mais ricas deste país eram beneficiadas com um gás mais barato, subsidiado pelo governo.
Resolveu-se, então, utilizar os recursos deste subsídio para apoiar apenas as famílias pobres, através do que foi chamado de Auxílio Gás, no valor de R$ 15,00.
Desta forma, todas as famílias cadastradas teriam acesso, pelo menos, ao Auxílio Gás! Bingo!
Com isto, estavam dados os incentivos financeiros para se implantar o CadÚnico, tanto para as prefeituras quanto para os beneficiários.
Faltavam apenas as estratégias de controle social que garantissem a focalização do cadastro.
Mobilização para o controle social
Neste sentido, foram acionados múltiplos atores sociais: segmentos religiosos, organizações sociais, conselhos, fóruns, empresários, enfim, todos os que pudessem contribuir para a lisura do processo.
Uma das organizações envolvidas, em função de sua capilaridade e grande importância, especialmente nos municípios médios e pequenos, foi a Maçonaria. Para isto, consegui ser convidada para a Assembleia Nacional das Lojas Maçônicas, no Centro de Convenções de Porto Seguro. Deparei-me com um imenso auditório com mais de três mil homens de terno preto, que me receberam com grande simpatia, e se propuseram a auxiliar no acompanhamento do processo de cadastramento.
Hoje não saberia dizer qual dos agentes de controle foi mais efetivo, mas estudos de organismos internacionais são unânimes em assegurar o alto grau de focalização do CadÚnico. Aliás, um dos mais baratos do mundo!!!
O Índice de Desenvolvimento Familiar
Havia a perspectiva de que os dados cadastrais pudessem servir de base para a aferição do nível de desenvolvimento de cada família. A exemplo do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), desejava-se conceber um Índice de Desenvolvimento Familiar (IDF), a partir dos dados do CadÚnico.
Este desafio foi apresentado ao IPEA e a equipe de Ricardo Paes de Barros chegou a conceber uma proposta.
Este poderia ter sido um importante instrumento de avaliação dos resultados das políticas públicas de superação da pobreza, comparando-se o IDF antes e depois das intervenções. Infelizmente o governo terminou e não conseguimos implantar esta proposta.
A expansão vertiginosa do CadÚnico
Em novembro de 2002, um ano e 4 meses após sua criação, o CadÚnico já havia alcançado um total de 9.3 milhões de famílias pobres (57% do total); 92% dos municípios haviam iniciado ou terminado seu processo de cadastramento; 3.7 milhões de famílias possuíam seus Cartões Cidadãos (cartões bancários) e 100% dos municípios dispunham de agência ou agente bancário.
Em alguns estados, principalmente no Norte e Nordeste, como Acre, Ceará e Rio Grande do Norte, o cadastramento já havia alcançado mais de 80% das famílias pobres. Os maiores percentuais correspondiam justamente aos estados com grande número de Municípios beneficiados pelo Alvorada.
Foram heróis desta empreitada: técnicos das Secretarias de Assistência Social, monitores do PETI, professores municipais, coordenadores de agentes jovens, agentes comunitários de saúde e técnicos das Secretarias de Agricultura, PRONAF, EMATER, Conselhos Estaduais e Municipais de Desenvolvimento Rural, Saúde e Educação, Organizações Não-Governamentais parceiras, equipes dos Portais do Alvorada e voluntários, sob a batuta firme e competente de Sonia Silva (Secretária Nacional de Planejamento e Avaliação da SEAS).
Este processo foi uma verdadeira parceria intersetorial e multissetorial que, através de um trabalho colaborativo, conseguiu produzir o mais importante instrumento para a concepção, gestão e avaliação das políticas públicas de redução da pobreza do Brasil.
Mais informações sobre o Cadastro Único das Famílias Pobres constam nesta apresentação.
No Episódio 12, vamos focalizar os pilares básicos para a implantação de uma política pública. Em primeiro lugar, um intenso processo de capacitação de todos os envolvidos. Em segundo lugar, o estabelecimento de efetivas estratégias de comunicação e mobilização. Finalmente, o incentivo à colaboração, através do apoio a organizações da sociedade civil e ao voluntariado.
Fonte: Blog Wanda Engel