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Episódio 8 – Uma nova geração de política de superação da pobreza, por Wanda Engel

Foto: Arquivo Pessoal

O Projeto Alvorada constituiu um grande avanço na concepção das políticas de redução da pobreza e da desigualdade, mesmo em relação à Agenda Social, que incorporou uma nova proposta de gestão colaborativa voltada para resultados.

Mas afinal, o que era o Alvorada? Bem, vamos contar tudo desde o início.

Tudo começou com a criação do Fundo da Pobreza. Era uma iniciativa do político baiano Antônio Carlos Magalhães – um “pacote de bondades” vindo de quem era conhecido, pela oposição, como “Toninho Malvadeza”.

O Fundo da Pobreza contava com um orçamento trienal de R$ 13 bilhões (recursos que hoje parecem insignificantes, se comparados com o montante da corrupção), a serem investidos exclusivamente em programas voltados à redução da pobreza.

Partiu-se, então para a concepção de uma proposta que transformasse recursos em resultados concretos para a população mais pobre deste país.

O primeiro desafio foi a escolha do conceito de pobreza com o qual iríamos trabalhar. Partindo do pressuposto de que a pobreza é um fenômeno multissetorial, não se resumindo à carência de renda, decidimos utilizar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) para a definição das áreas a serem beneficiadas pelo programa.

Este índice, criado por Amarthia Sen, articula indicadores de renda, educação e saúde, ampliando o escopo da definição de pobreza e indicando a necessidade de intervenções de caráter intersetorial.

Assim, a ideia inicial foi a de focalizar os 14 estados com mais baixos IDHs, o que justificou a escolha inicial do nome: IDH 14.

Quando Pedro Parente, então ministro da Casa Civil, me convidou para coordenar o programa, minha primeira reivindicação foi a troca do nome, que me parecia mais apropriado para um “remédio contra caspa”.  Surgia, então, o “Projeto Alvorada”.

Com base na constatação da desigualdade interna dos estados, evidenciada pela existência de municípios muito pobres, em estados ricos, os focos passaram a ser as microrregiões e as cidades com baixo IDH (igual ou inferior a 500).

A inclusão das microrregiões como unidades de atuação devia-se à intenção de se caminhar para a criação de consórcios de municípios. Assim, entravam no programa todos os municípios de uma dada microrregião, predominantemente pobre, incluindo alguns com IDH acima de 500, que deveriam ser os motores do desenvolvimento dos demais.

Explicar esta lógica nas inúmeras audiências públicas, em que políticos questionavam os critérios de inclusão no programa, defendendo os interesses de sua base eleitoral, não foi tarefa fácil. Entretanto, frente às evidências dos dados oficiais, todos acabavam se rendendo.

Sempre acreditei que critérios técnicos, claramente definidos, tinham maior impacto político que os chamados “critérios políticos”. Quando se escolhe em função de interesses políticos, os escolhidos acham é uma obrigação, enquanto os excluídos nutrem um forte sentimento de aversão pelo partido/político responsável pela decisão. Já os critérios técnicos, baseados em evidências, e bem explicados, geram uma percepção de justiça, com importantes reflexos políticos.

O lançamento do Projeto Alvorada

A foto de lançamento do Alvorada é um testemunho inequívoco da importância que o governo dava a este projeto social. A presença do Presidente, do vice-presidente, da maioria dos ministros, de governadores e prefeitos dos municípios beneficiados, simbolizou esta prioridade.

A importância da mobilização

O Alvorada tinha como princípio promover um consistente processo de mobilização. Assim, além do Lançamento Nacional, foram promovidos eventos de lançamento estadual ou municipal, de assinatura de convênios ou de inauguração de Portais do Alvorada.

Acreditávamos na força mobilizadora dos rituais e símbolos para criar uma identidade com o programa e fomentar a participação da sociedade.

Neste sentido, dispúnhamos de uma logomarca que aparecia em bandeiras, camisetas ou peças de divulgação. A proposta era a de construir uma “marca” que identificasse o esforço coletivo no enfrentamento da questão da pobreza e da desigualdade.

Foram realizadas dezenas de cerimônias em todos os estados onde se implantou o Alvorada, com a presença de autoridades de diferentes níveis; profissionais das áreas de assistência, educação, saúde e trabalho; agentes jovens; crianças beneficiárias do PETI; famílias e público em geral.

As assinaturas de convênios de saneamento básico (este era um dos programas que compunham o Alvorada) também foram alvo de muitos eventos, sempre com a presença de José Serra, então Ministro de Saúde.

 

Assinatura de convênio de saneamento básico no Pará com a presença do governador Almir Gabriel.

 

Assinatura de convênio de saneamento básico no Rio Grande do Norte com o governador Garibaldo Alves.

Com relação a Serra, há um “causo” interessante, retratando o contexto político em que se inseria o programa.

Era a cerimônia de assinatura do convênio de saneamento básico na Bahia. Já tínhamos percorrido praticamente todo o Nordeste para participar destes eventos.

Ocorre que o clima político em Brasília estava “instável, sujeito a chuvas e trovoadas”. Havia um desentendimento público entre Antônio Carlos Magalhães, então presidente do senado federal, e o presidente Fernando Henrique Cardoso, envolvendo José Serra. Neste contexto, o Ministro da Saúde evitava uma viagem à Bahia, área de influência de Antônio Carlos.

Atuando aparentemente como mediador, o governador baiano Cesar Borges se comunicou com Serra, dizendo que entendia as razões, mas não podia concordar que a Bahia fosse excluída do périplo. Além disso, argumentava, Antônio Carlos estaria em viagem ao exterior, evitando-se, assim, o possível constrangimento que sua presença poderia gerar.

Convencido, Serra confirmou sua participação na cerimônia. O evento estava previsto para o Centro de Convenções, ao qual cheguei mais cedo, sendo conduzida à Sala Vip.

No centro da sala, sentado confortavelmente em uma majestosa cadeira, estava Antônio Carlos, cercado pelo governador, pelo Ministro da Previdência, o também baiano Waldek Ornelas, por inúmeros deputados e prefeitos.

Minha expressão de espanto deve ter sido tão forte que, talvez temendo um desmaio, me ofereceram uma cadeira ao lado de Antônio Carlos.

Ao chegar e deparar-se com aquele grupo, Serra ficou “beige” e, após cumprimentos formais, nos dirigimos todos para o auditório absolutamente lotado. Ao anúncio de cada autoridade, o auditório se manifestava. Palmas efusivas para Antônio Carlos e frias para Serra.

O pior foi que, naquele clima de tensão e polarização, eu seria a primeira a falar. Respirei fundo e comecei minha “pregação” sobre o tema do enfrentamento da pobreza e da desigualdade, que deveria estar acima de questões de ordem política ou ideológica, devendo ser, inclusive, o elemento catalizador de um grande pacto nacional etc.

Não sei se surtiu efeito, mas a cerimônia seguiu em certa paz.

Este caso dá conta de como o contexto interfere diretamente na implantação das políticas públicas, especialmente aquelas que se propõem a utilizar estratégias colaborativas para sua implantação.

Se no interior dos governos, divergências de cunho político-ideológico ou mesmo pessoal podem criar conflitos entre as secretarias, aparentemente intransponíveis, imagina quando se pretende articular diferentes níveis de governo, sociedade civil, empresariado e voluntariado! Pode parecer impossível, mas no caso de problemas complexos como o da pobreza e desigualdade, não existe outra opção.

Lançamento do Alvorada no Amapá, em um Seminário Intermunicipal, com a presença do governador João Capiberibe.

Programas que compunham o Alvorada

Para compor o Alvorada, foram identificados 15 programas, nas áreas de educação, saúde e renda, a serem implantados ou ampliados nos 2.318 municípios brasileiros de baixo Índice de Desenvolvimento Humano.

Este conjunto de programas sob a responsabilidade de 9 ministérios, era coordenado pela Secretaria de Estado de Assistência Social (SEAS).

Na educação, foram incluídos Alfabetização Solidária, Educação de Jovens e Adultos, Ensino Médio e Água na Escola; na saúde, Saneamento Básico, Redução da Mortalidade Materna e Infantil e Saúde da Família; e na geração de renda, o Microcrédito, PRONAGER, Energia em Pequenas Comunidades, PRONAF, PRODETUR e Pobreza Rural. A seguir o infográfico com o conjunto dos programas. A apresentação sobre o Projeto Alvorada pode ser acessada aqui.

A grande expansão dos programas de transferência condicionada de renda também se deu no bojo do Alvorada. Além dos já existentes – Bolsa Educação (Ministério da Educação); Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (SEAS) e Agente Jovem (SEAS) – foi criado um novo programa para a faixa de 0 a 6 anos: o Bolsa Alimentação, no Ministério da Saúde.

Note-se que no centro do processo estava a Rede de Proteção Social, sob a responsabilidade da assistência. Num segundo âmbito, os programas de promoção humana (educação, saúde) e os de transferência de renda, responsáveis pela garantia das condições financeiras básicas. Num terceiro nível, os programas de geração de renda, completando, assim, o processo de promoção da autonomia.

Os principais responsáveis pela implantação desta “engenharia social” eram os municípios, com apoio dos estados e do governo federal. Os estados também estavam a cargo direto de alguns programas, como o do Ensino Médio, por exemplo.

Ou seja, a execução direta dos programas estava especialmente a cargo dos municípios mais pobres do país, desprovidos de conhecimentos técnico-gerenciais, carentes de organizações da sociedade civil e extremamente suscetíveis a pressões políticas.

Era fundamental, portanto, que se oferecesse um apoio efetivo para qualificar a gestão local, bem como para fortalecer organizações da sociedade civil, no exercício do controle social. Para isto, foram criados os “Portais do Alvorada”.

Dada a importância do Alvorada, ele segue como foco de mais um episódio – o Episódio 9.  Nele você vai saber o que era o Portal do Alvorada e entender as razões que fizeram deste programa um marco na história da luta contra a pobreza e a desigualdade no país. Enfim, sem querer ser “spoiler”, vou deixar que vocês descubram tudo isto no próximo episódio. Não percam!

*Wanda Engel é diretora do Instituto Synergos no Brasil e foi ministra da Assistência Social.

**O artigo foi publicado no Blog da ex-ministra.

Foto: Arquivo Pessoal

 

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