– Que cocê vai fazer com o resto, Genaro, meu bem?
– O resto? Pode deixar que eu aproveito.
Os versos acima poderiam estar num inquérito policial, mas estão no cancionário brasileiro. Eu sei cantar, provavelmente você também. É o trecho final da música “Maria Chiquinha”, música que ficou conhecida com Sandy e Junior e foi o primeiro sucesso da carreira dos dois, quando tinham 6 e 5 anos (!).
Se hoje temos problemas em reconhecer a violência contra a mulher, quem dirá nas décadas de 80 e 90. A questão era tão tão tão naturalizada que nossa sociedade achou incrivelmente normal duas crianças cantarem isso. A gente simplesmente nunca reparou do que a música se tratava e, se reparou, relevou.
Sou fã de Sandy e Junior desde sempre e foi há pouquíssimo tempo que percebi o que sempre cantei. Uma das músicas mais importantes para mim é um feminicídio dos mais típicos e com requintes de necrofilia. Culpa de Sandy e Junior? De jeito nenhum. De pais desnaturados? Também não. Culpa da nossa sociedade mesmo, que aceitou e aceita até hoje músicas e outros produtos culturais que rebaixam a mulher*, e que tem o sexismo tão incorporado que mesmo cantado por crianças ele passou despercebido. A violência de gênero está entranhada no DNA do Brasil.
E é essa normalização que permite que 13 mulheres sejam mortas por dia no país por motivos discriminatórios. Ou seja, por feminicídio. A devastadora maioria morta por familiares e pessoas de confiança, especialmente parceiros e ex-parceiros. Mortes totalmente evitáveis, que sinalizam por meses ou anos antes de se concretizarem, mas que não encontram resposta da Justiça. O número brasileiro é o quinto mais alto do mundo, mas apesar de ser um verdadeiro escândalo ainda comove e mobiliza muito pouco a sociedade. Em geral, o viés de gênero é apagado e o problema é tratado como um caso pessoal e não como a doença social que é.
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