Em uma noite, uma só noite de alegria, a arte e a coragem, a serviço uma da outra, viraram pelo avesso o senso comum de uma sociedade assustada face à dor, refratária ao confronto com a diversidade e a adversidade. Bastou uma noite, o coração que é o mesmo em todos, pulsando e acelerando outros corações, bastou um salto mortal, um estranho peixe-homem, incansável, deslizando em um mar infinito, o milagre de uma escada feita rampa, dois cegos que se adivinham no abraço. Um robô entra na dança com uma mulher, anunciando o futuro que já é hoje. E eles lá, admiráveis, pais e filhos, bota no pé, juntos, vamborandá. É preciso saber viver.
Tudo tão fácil de sentir, antes mesmo de entender. Um recado nítido, pungente e irrefutável. Ninguém saiu do Maracanã como entrou, ninguém desligou a televisão sendo quem era antes. Nunca tantos torceram tanto por uma atleta que caiu, levantou e deu a volta por cima. Caímos e levantamos com ela. Quem, na vida, jamais caiu?
A festa de abertura da Paralimpíada foi um desafio à consciência individual e coletiva. Há uma ética que implicitamente nos foi proposta. O que pessoas com necessidades especiais esperam de cada um e da sociedade não é compaixão, é respeito. Respeito é a atenção especial de que eles mais necessitam. Também, como todos os outros, esperam o incentivo do aplauso e da torcida. Porque, convenhamos, por maior que seja nossa admiração por campeões como Bolt e Rafaela Silva, os verdadeiros heróis, os que ultrapassam os limites de si mesmos, não são eles. São os que estão concorrendo agora.
Os atletas paralímpicos ensinam a todos, deficientes ou não, a não pedir licença para existir, a apropriar-se da vida como ela se nos apresenta e viver o que nos apraz na medida e até mesmo no limite extremo de nossas possibilidades. Ensinam como se alarga o campo do possível, com amor à vida, perseverança e autoestima, o que, para qualquer um de nós, mesmo em situações menos exigentes, nem sempre é fácil.
A Paralimpíada tem o sentido profundo de aproximar mundos que o preconceito e o medo da convivência com o sofrimento separam. É um momento em que os portadores de alguma deficiência falam com sua própria voz, seus próprios gestos, ponto de partida de toda luta por uma causa. Nesse caso, a causa é o reconhecimento da diversidade inscrita em um destino, sem exclusão ou hierarquia. Somos parte do mesmo caleidoscópio humano e os direitos diferenciados decorrem desse entendimento.
Solidariedade e responsabilidade face ao outro são bons parâmetros para medir o grau de desenvolvimento que uma sociedade alcançou, critérios que vão muito além dos habituais indicadores da economia. Sentir-se responsável pelos outros é o fundamento mesmo de uma sociedade civilizada, o que garante a sua coesão. Reconhecer os direitos de cada um, segundo suas necessidades, é a seiva de uma democracia real, que leva em conta a identidade das pessoas.
Em artigo publicado esta semana no GLOBO, Teresa Costa d’Amaral, histórica defensora dos deficientes, traça um retrato irretocável do desemparo em que vive mais de 20% da população brasileira, invisível a governos e empresas, encoberta por uma capa de vergonhosa indiferença. Invisíveis também aos que estacionam carros nas vagas que lhes são reservadas, ocupam os lugares que lhes são destinados nos transportes públicos ou usam os banheiros que lhes são atribuídos.
Invisíveis, malgrado as leis que há 30 anos são promulgadas, aperfeiçoadas e solenemente ignoradas. Em janeiro deste ano entrou em vigor o novo Estatuto da Pessoa com Deficiência. Ainda vigora o divórcio entre a lei e a sociedade, uma das múltiplas taras da nossa democracia inconclusa. Quem fiscalizará os governos que não fiscalizam o cumprimento das leis? Quando a confiança nos governos atinge o nível mais baixo, resta à sociedade, a todos que não são cúmplices dessa indiferença, afinar mecanismos de controle e denúncia.
Há tempos li que arqueólogos dataram o nascimento da sociedade humana graças ao esqueleto de um hominídeo que, com uma perna quebrada na infância, viveu até os 30 anos. Concluíram que ali existira uma sociedade humana, capaz de conviver com um inválido que, em um mero bando, não teria sobrevivido com essa deficiência. Para esses cientistas, o que funda a sociedade humana é a solidariedade entre seus membros, a responsabilidade face ao outro, sobretudo o mais vulnerável. O que hoje chamamos de compromissos éticos. Sem a presença do outro, ainda seríamos hordas selvagens disputando um naco de carne.
Rosiska Darcy de Oliveira é escritora
rosiska.darcy@uol.com.br
*Publicado originalmente no jornal O Globo edição do dia 10 de setembro.