Mônica Manir – O Estado de S. Paulo
19 Junho 2016 | 03h 00 – Atualizado: 18 Junho 2016 | 22h 20
Do premium sertanejo fechado ao funk, elas se mostram ‘tão românticas quanto piriguetes’ nas casas noturnas de SP
“Quem já pegou?” Alguns vários levantam a mão. “Quem ainda não pegou?” Alguns poucos se manifestam, mas logo abaixam o braço. Sem necessidade. Provavelmente ninguém ali vai se lembrar dessa sinceridade toda. É quarta-feira, já quase madrugada de quinta. Meio de semana. A casa de shows Villa Mix está cheia, o que me faz lembrar uma frase do psicanalista Christian Dunker durante entrevista para esta série de reportagens: “Hoje a vida do jovem está em ritmo de balada; pra quem quiser, tem uma todos os dias”.
No palco, Bruno César e Rodrigo Vecchi dividem o protagonismo com Thainá Cardoso, e todos se revezam nos selfies com o celular de meninas que estão na pista. Logo a rede de contatos delas saberá onde estão, e alguém dessa rede repassará a foto para o ex, numa trama que visa a manter latente a presença da garota e a cutucar a dor de corno do menino. Porque a sofrência, ali, é garantida. “Agora eu tô no bar do Araújo bebendo de tudo, olhando as fotos dela no meu telefone, tô tonto e mesmo assim quero outra dose, porque no som ao vivo tá rolando a nossa do Bruno e Marrone.”
A Villa Mix, que se autointitula casa noturna premium sertaneja, tem outros músicos como sócios: Jorge & Mateus. A dupla de Goiânia está entre as tops do público. Na fila de entrada, aliás, um jovem da capital de Goiás se vangloriava de conhecer os músicos desde o primeiro show numa boate de Itumbiara para um público universitário. Vindo de um esquenta, ele reclamava do atraso na abertura da casa e se debruçava numa amiga de saia curtíssima, que trincava de frio. Calça comprida não é proibida na Villa Mix. Proibidos são boné, chapéu, gorro, touca, regata, camisa de times e torcidas, mochila, correntes, narguilé, chinelo, sandália rasteirinha, sandália aberta, tênis feminino, bermuda, calça Capri, camisetas de fã-clube, adereços, cartazes e faixas.
No ano passado, a casa ficou em maus lençóis nas redes sociais. Frequentadores denunciaram que proibidão na casa não era exatamente o gorro, mas o gordo. E o negro. E o “feio”. De acordo com os reclamantes, eles seriam barrados pela hostess com a desculpa de que a casa estava lotada. O Ministério Público abriu investigação, e a boate se defendeu. Afirmou que “não pratica nenhum crime de discriminação, como absurdamente alegado, tanto que há frequentadores de todas as raças, estaturas, idades e etnias”.
Longe do breu, no implacável espelho do banheiro feminino, as garotas todas parecem da mesma raça, estatura e etnia. Dá para arriscar que a média de idade gira em torno dos 19 anos. Uma de 17 mostra para a outra a identidade falsa, que tinha funcionado de novo. Guarda o documento na bolsa e tira o celular para mais um selfie com o cabelo jogado de lado. O preto domina – o vestido preto, a sandália preta, a clutch preta. Vestido preto curto, sure.
“Não consigo entender esse sertanejo universitário, esse amor desmaiado das meninas”, afirma a atriz Marina Filizola. “Tão românticas e tão piriguetes ao mesmo tempo.” A psicanalista Maria Lucia Homem tem inquietação parecida, mas dá um passo adiante: “É uma classe média com um discurso conservador em termos de costumes, numa relação subserviente tanto do feminino-fã quanto do masculino-bombado, mas com um visual hipersexualizado”.
Se na pista a contracultura está meio estacionada, no palco as mulheres do sertanejo tentam avançar. Não estão mais restritas às duplas mistas, pelo menos. E lotam shows. O produtor e documentarista Renato Barreiros lembra Marília Mendonça, Naiara Azevedo e as gêmeas Maiara e Maraísa, cuja toada “10%” caiu no gosto de 100% das garotas. “Tô escorada na mesa, confesso que caí da cadeira / e esse garçom não me ajuda, já trouxe a 20.ª saideira / já viu o meu desespero e aumentou o volume da televisão / sabe que sou viciada e bebo dobrado ouvindo um modão.”
Sim, elas hoje bebem tanto quanto eles. Vide reportagem anterior.
No fluxo. Barreiros tem uma relação mais íntima com o funk. São de sua autoria os documentários Funk Ostentação e No Fluxo. Fluxo é o baile funk de rua, não raro marcado no improviso, pelo Face ou pelo Whats. Alguém abre o som do carro numa certa rua e a uma mega-altura, a meninada começa a juntar, um avisa o outro, chegam mais carros equipados e o evento avança. “É a principal diversão da galera na periferia”, afirma Barreiros, que calcula uns 400 deles na cidade de São Paulo por fim de semana.
“Eu frequento o baile do 17”, diz Bruna, de 20 anos. O 17 fica na Rua Herbert Spencer, em Paraisópolis. É dos poucos fixos da cidade. O combinado é os garotos levarem bebida; as garotas, as amigas. Mas na quinta Bruna queria era ver os MCs que a Nitro Night juntou pra comemorar o aniversário do MC Menor da VG. Lá estariam o MC Brisola, o MC Kevin, o MC MM e o MC Pedrinho, este último um adolescente de 13 anos cuja história o Estado contou em fevereiro do ano passado, quando ele dava 19 shows por semana.
A Nitro Night fica em Santo Amaro, numa rua residencial com um bar em frente. A casa cobrava R$ 10 das garotas até as 23h30 e R$ 20 depois. Para efeito de comparação, na Villa Mix, o ingresso pra elas é de R$ 50 até 23h30 e R$ 100 depois desse horário. A única restrição visual da Nitro são camisas de time e chinelo. Mas cai bem chegar de short, salto alto, batom vermelho, blusa justa.
Letícia, de 21 anos, tinha Crocs nos pés e uma sacolinha na mão, estufada com os saltos de 7 centímetros emprestados da amiga Elaine, do seu lado na fila. Vinham as duas de um restaurante em Pinheiros onde trabalham como atendente e na cozinha. Pegaram o busa e voltariam com ele direto para o trabalho, no dia seguinte. Ficariam sem dormir, mas a batida do funk valia por tudo. “Ele não deixa a gente triste nunca”, sorriu Letícia, que já tinha calculado o mato ali perto da boate onde esconderia sua sacola, agora com os Crocs, para pegar na saída.
As duas têm consciência de que o funk ostentação desceu do pedestal. Em alta está o funk putaria, que não mede as palavras para dizer a que veio: “Bota o b. no revólver”, “Quer andar de meiota, senta na minha p.”, “Vou f. com ela muito louco de selvagem”, “Taca, taca, taca, taca, taca”.
“Não ligo muito pra letra”, confessaram Letícia, Elaine, Bruna, Fernanda, Juliana, Naiara, Aléxia. Estavam ali pelo ritmo, para espairecer. Elaine, de 22 anos, nasceu no funk e diz que o putaria só quer afetar a imagem das mulheres. Mas ai de quem lhe encostar o dedo no cabelo alisado: “Meu corpo não é do governo pra eles meterem a mão”.
Elas se sentem mais seguras no fluxo do que na boate porque têm a comunidade por perto. É dar um grito para aparecer o irmão, o primo, o tio. Quer dizer, seguras em termos, porque já perderam muito salto ladeira abaixo fugindo da polícia. “Eles batem de cassetete até em mulher”, diz Letícia, que já se negou a colocar as mãos para trás numa blitz na favela. Um conhecido consumia loló, não ela. Antes de entrar no baile, ainda tento conversar com uma garota, mas ela se nega: “Não vou falar; você quer me entrevistar por causa da garota do estupro, né?”
Enquanto espero na revista, penso no que haveria tanto para vasculhar em garotas que chegam com pouca roupa, pouco dinheiro (muitas não levam um centavo além da condução; esperam ganhar a bebida de algum cara) e algumas com tão pouca idade, as “novinhas”, que nem na fila deveriam estar. Lá dentro, MC MM já começou a “adestrar as cadelas”. No gargarejo, garotas pedem selfies ao cantor e rebolam até o chão, de costas para a plateia.
Barreiros acha que não é bem assim que funciona. Para ele, o funk putaria é coisa de adolescentes e, embora pareça coisificar a mulher, a valoriza nesse cenário. “O ostentação era dos homens para os homens, enquanto o putaria é para as garotas, que se sentem centro das atenções.” Já Maria das Neves, coordenadora da juventude da União Brasileira de Mulheres, que fez parceria com a Liga do Funk, entende que o putaria é expressão do que acontece na quebrada. “O mercado se apropriou disso, mas é preciso notar que essa sexualidade ainda é muito masculina. Precisamos trabalhar melhor isso na periferia, popularizar o feminismo, e o funk pode ser um caminho.”
Quem sem dúvida chegou aos jovens da periferia foram os evangélicos. Mas isso é tema para outra ocasião. Por enquanto, fica um dos gritos de guerra do MC MM, dito por trás dos óculos espelhados enquanto uma menina estica o celular: “A putaria começou. Que Deus abençoe todos vocês”.
Uma voz firme. Faz quatro anos e meio que Gabriela de Brito, vulgo Gabi Nyarai, participa da Sexta Free na frente do Banco Safra, na Av. Paulista. São batalhas de rimas de três rounds cada, com temas definidos. Em volta dos desafiantes, a galera do rap vota no melhor por aclamação.
Na sexta-feira em que lá estive, Gabi já estava na semifinal. Destacou a importância do feminismo negro e logo voltou à roda. Sua companheira, Thamy, fotógrafa de gestantes, partos e recém-nascidos, disse que haviam gravado mais um vídeo de Gabi e publicado no Face. “A mulher vem mostrando que está na linha de frente”, afirmou. De repente, uma aclamação. Gabi, de 20 anos, levou a batalha. No YouTube ouço uma gravação sua, Pesadelos Reais: “Já não se faz mais amigos, só se acumula contatos / pessoas de status sem o mínimo pudor / e foi por um curtir que a mina se entregou”.
*Publicado na edição do dia 18 de junho do jornal Estado de S.Paulo