Eles foram colegas de classe. Um é pesquisador da USP, o outro está na cadeia. Suas vidas difíceis mostram como o país desperdiça seus talentos
Capítulo 1: De como dois meninos desenvolveram o dom da invisibilidade
Na antiga 1a série, a professora Heloisa, da Escola Estadual Zoroastro de Oliveira, em Campanha, interior de Minas Gerais, começava sua missão de guiar sua nova turma de crianças de 7 anosnos primeiros passos da alfabetização. Falava do A de abelha, que era o mesmo A de anão, amor, amigo… Crianças dessa idade são em geral curiosas e na maioria das vezes participativas, mas um menino destoava da classe. Quieto, parecia imerso em seu mundo particular.
Nas semanas seguintes, conforme a professora passava para o B de bola, de boi e de beleza, o comportamento do garoto começou a mudar. Seu mundo particular parecia ter colidido com o mundo de outras crianças e sua atenção se voltava para brincadeiras, risos, pequenos gritos. Foi então que a paciência da professora se esgotou. Num dia da letra B, as brincadeiras beiraram a balbúrdia, e a professora quis dar um basta, com uma baita bronca. Berrou que o menino seria um burro, que passaria fome sem nunca conseguir um emprego porque não saberia ler.
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Giovanni Dias Ferreira Pinto, o menino loiro, de cabeleira farta, que causara aquela explosão, revidou a agressão: mirou o olhar para as paredes repletas de cartazes dos alunos da 4a série (atual 5o ano), que usavam a sala no outro turno, e começou a recitar o que estava escrito em cada um deles. Naquela idade, caiu a máscara com que se protegia desde os 3 anos. Quando ele demonstrou para a mãe, uma professora primária, que já conseguia ler, ouviu um conselho: não colocar o carro à frente dos bois. Querer saber mais do que lhe ensinavam era sinal de desassossego. Destacar-se era errado.
Agora, na escola, a experiência parecia dar razão à mãe. Quando a professora percebeu que seu conhecimento estava muito além do da turma… mandou-o para a diretoria. Nenhuma menção ao fato de o menino já estar alfabetizado. O foco era a bagunça. Daquela conversa, tanto Giovanni quanto seus pais se recordam apenas da vergonha que sentiram ao ouvir que ele atrapalhava o andamento de toda a sala. O pai de Giovanni, Antonio Batista Ferreira Pinto, é um artesão de arte sacra conhecido na cidade. A mãe, Angela, professora da Associação de Pais e Amigos do Excepcional (Apae). Os dois, muito católicos, frequentavam a missa toda semana e participavam ativamente das festas em datas religiosas. Não estavam acostumados a sair da linha – tampouco a levar pito por isso.
Dali em diante, Giovanni tentou se controlar, mas era, afinal de contas, um menino de 7 anos – e entediado. Pior do que a bagunça eram as perguntas que ele às vezes fazia sobre cálculos matemáticos que não faziam parte do programa do ano. A professora interpretava essas perguntas como provocações, e Giovanni acabou sendo mandado para a psicóloga da cidade. Com o consentimento da mãe, que sempre estranhara quanto seu filho era diferente, levaram o menino para a Apae.
O ano era 1985. “Foi quando virei ator e aprendi a disfarçar”, diz Giovanni, hoje com 37 anos, educador e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP). “Eu não entendia por que estava ali. O que me ajudou é que entendi como poderia sair dali.” A presença da mãe como professora da Apae ajudou. Ele a conhecia e sabia qual comportamento funcionaria com ela e, talvez, com todos: parar de fazer perguntas “descabidas” para sua idade. Como não tinha clareza sobre as perguntas permitidas por faixa etária na etiqueta dos adultos, resolveu parar com todas elas. Na dúvida, o melhor a fazer era ficar quieto e obedecer. Começava a exercitar o poder dainvisibilidade. Deu certo. Em poucos meses, Giovanni foi liberado de frequentar a Apae.
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De volta à escola, Giovanni continuou a lidar com a questão de um conteúdo aquém de sua capacidade. Mas percebeu que podia aprender na biblioteca, sozinho, depois das aulas. Frequentava tanto o prédio que logo descobriu um jeito de passar da ala infantil às alas regulares. Aos 7 anos, devorava os livros de eletrônica. Como não podia levar nenhum deles para casa, passava horas na biblioteca. “Lá, dava vazão a toda a minha curiosidade”, diz. “Isso me ajudou a me tornar o aluno que a escola, a minha mãe e a psicóloga queriam:comportado e invisível.”
A biblioteca municipal de Campanha.Giovanni e Dirceu iam para lá para estudar em segredo (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
Cada vez mais isolado e absorto em seu mundo privado, Giovanni foi surpreendido aos 11 anos, quando passou para a 5a série na Escola Estadual Vital Brasil. Lá, conheceu um menino pardo, de cabelos crespos, que sabia fazer cálculos ainda melhor do que ele e que também tinha intimidade com livros e teses. Dirceu Manuel de Andrade era calado como Giovanni, mas muito menos sisudo. Sorria com facilidade, era muito atencioso e parecia ter o apreço dos professores.
A experiência escolar de Dirceu era parecida com a de Giovanni: bagunça e dúvidas despropositadas o levaram a ser classificado como aluno-problema. Nos primeiros anos, como era sempre o primeiro a responder às perguntas dos professores, ganhou fama de sabe-tudo e exibido. Pela pressão dos colegas, acabou também descobrindo o dom da invisibilidade. Enquanto Giovanni refugiava-se na biblioteca, Dirceu passava o tempo fora da escola junto à mãe, no quarto e cozinha em que moravam eles, o pai e o irmão quatro anos mais novo.
Quando um menino invisível enxergou o outro, formou-se umaamizade sólida. Giovanni, que desde os 6 anos montava rádios e estudava eletricidade, se encantou com a rapidez de Dirceu em compreender os conceitos e avançar nos cálculos relacionados a eles. No dia em que a professora ensinara equações do primeiro grau, na 5a série, Dirceu mostrou a Giovanni como fazer equações de segundo grau e sua relação com as curvas parabólicas. Em seguida, ele mostrou como fazer cálculos infinitesimais simples, como derivação e integração. Passavam o recreio na escadaria da quadra, longe da confusão, divagando sobre raciocínios matemáticos, física, ciências e o que mais lhes interessasse sem chamar a atenção de ninguém. Foram quatro anos em que Giovanni e Dirceu podiam, entre eles, ser eles mesmos.
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Capítulo 2: De como os garotos chegaram à adolescência e foram ganhar a vida
O término do ginásio (ensino fundamental) foi marcado por mudanças drásticas na vida dos dois amigos. Não foi apenas o fim do convívio entre garotos antes solitários. Foi também a antecipação da entrada na vida adulta.
Dirceu ainda estava com 14 anos quando sua mãe, Vicentina,morreu aos 50 anos. A pressão alta a levou para o hospital. O coração não a deixou sair. A partir de então, Dirceu passou a trabalhar em subempregos na cidade, enquanto cursava o ensino técnico em contabilidade. Era querido por todos. Aos 16 anos, quando conseguiu seu primeiro estágio no escritório de contabilidade, perdeu o pai, Manuel, então com 76 anos. “Ele tremia muito, não estava bem há tempos”, conta Messias Andrade, de 66 anos, meio-irmão de Dirceu. “Sofreu um tombo na rua, foi internado e não voltou.” O pai tivera 14 filhos do primeiro casamento. Hoje, somente cinco estão vivos. Três deles moram em Campanha.
Na casa, sobraram, então, Dirceu e seu irmão menor, Dircilei. As contas de luz e água e a conta do mercado eram pagas com a pensãode um salário mínimo do pai e o auxílio-alimentação do estágio de Dirceu. Aos 18 anos, Dirceu trocou os números do escritório de contabilidade pela linha de produção da fábrica de ferramentas Moretzsohn, a maior empresa da região. “Era irrecusável”, diz Euclides Andrade, de 55 anos, outro meio-irmão de Dirceu. “Tinha convênio, cesta básica, muitos benefícios. Ele foi direto para a linha de produção”, diz ele.